terça-feira, 30 de novembro de 2010

Filosofia em gotas: Hume

David Hume (7/5/1711-25/8/1776) foi um filósofo, historiador, economista e ensaísta, conhecido principalmente por seu empirismo em relação ao conhecimento humano, seu ceticismo metafísico e utilitarismo nos domínios da moral e da política. Ele é considerado uma das figuras mais importantes da história da filosofia ocidental e do Iluminismo escocês. Seu trabalho segue a tradição do empirismo britânico que conta com nomes como Francis Bacon (1561-1626), John Locke (1632-1704) e George Berkeley (1685-1752), tendo forte influência dos nominalistas da Escola de Oxford, no século XIII.
Em Tratado da Natureza Humana (1739), Hume se esforçou para criar uma "ciência do homem" ao mesmo tempo naturalista e totalizante (p. 8 et seq). Propunha-se a examinar a base psicológica da natureza humana. Contrariamente aos racionalistas, notadamente Descartes, ele afirmava que a crença - e não a razão - regia o comportamento humano. Sua frase mais famosa revela bem isso: "A razão é e deve ser apenas escrava das paixões" [p. 228]. Foi sempre opositor da existência de ideias inatas, afirmando que os seres humanos tinham apenas conhecimento das coisas por meio da experiência direta.
As percepções foram, por ele, divididas entre impressões vivas e fortes ou sensações diretas e "idéias" mais fracas, que seriam "copiadas" das impressões. Para ele, o comportamento mental era governado pelo costume ou hábito. O uso da indução, por exemplo, só se justificaria pela nossa ideia de "ligação constante" de causas e efeitos [p. 48 et seq]. Essa ligação seria, todavia, fraca: a regularidade com que dois eventos se apresentaria faria com que imaginássemos que um era causa do outro. Seria, portanto, uma crença ou um hábito de nosso pensamento.
Sem impressões diretas do "eu metafísico", dizia, os seres humanos não tinham a noção real do "eu", mas apenas uma vaga noção ou um feixe de sensações associadas ao que seria o "eu". A razão não era capaz de definir os fins, apenas fornecer os meios, a partir do exame dos conceitos e experiências, que realizariam tais fins (intrumentalismo). Essas ideias estão na base da teoria das escolhas racionais de nossos dias.
Hume defendia ainda a compatibilidade entre o livre-arbítrio e o determinismo. Um implicaria o outro (p. 135 et seq, 332). Sua tese moral era, além do mais, sentimentalista: a ética seria baseada em sentimentos, em vez de de princípios morais abstratos (p. 315 et seq). A razão não motivaria a ação, mas os desejos e sentimentos. Seriam eles que produziriam as crenças morais (antirrealismo moral).
Sua influência no direito e na argumentação moral também foi sentida com a distinção entre o mundo do ser e o mundo do dever ser. Haveria uma distinção fundamental entre um enunciado descritivo (isto é x) e um enunciado prescritivo (isto deve ser x). Não se poderia dar um salto entre os dois planos. De algo que é não se pode, por exemplo, extrair uma prescrição, uma norma (falácia naturalista de Moore).
Em Idea of a Perfect Commonwealth, Hume se opôs à ideia defendida por Montesquieu de que toda grande nação seria corrupta e não governável. Quanto mais extensa fosse a nação, dizia, mais tenderia a ser estável: "Apesar de as pessoas como um órgão serem incapazes de governar, caso elas se dispersarem em pequenas unidades (tais como colônias individuais ou estados) elas são mais suscetíveis de se submeter à razão e à ordem; a força das correntes populares (populismo) e marés é, em grande medida, quebrada". A coordenação da pluralidade impediria as conspirações das elites. Os federalistas foram muito influenciados por Hume. Madison, em Notes on the Confederacy [1787], praticamente repetia as ideias políticas de Hume.
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domingo, 28 de novembro de 2010

OPERAÇÃO LIMPA RIO

Clóvis Rossi escreveu hoje na Folha o artigo O Exército e o ovo da serpente, discutindo a participação das Forças Armadas na Operação Limpa Rio. A tese ou as teses são interessantes. Destaco o risco de tudo terminar na mesma após a poeira assentar. Seja com o retorno dos bandos aos morros, seja com a sua substituição pelas milícias.
SÃO PAULO - Do subchefe operacional da Polícia Civil do Rio, Rodrigo Oliveira, na quinta-feira: "A comunidade [da Vila Cruzeiro] hoje pertence ao Estado".
Que bom. Mas é indispensável perguntar: não deveria ter sido sempre assim? E não só com a Vila Cruzeiro, mas com todas as comunidades espalhadas pelo Brasil.Por não ter sido sempre assim, fertilizou-se o campo para a criminalidade, a grossa e a miúda.
Cabe também perguntar -e talvez seja a pergunta-chave- por que demorou tanto tempo para recuperar a Vila Cruzeiro se, agora, todo mundo diz que se trata de um bastião do narcotráfico?
Por que foi preciso que a bandidagem praticasse, no asfalto, cenas de guerrilha explícita para que as autoridades reagissem?
O cotidiano de medo a que vivem submetidos os brasileiros, nas grandes e médias cidades, não bastou para requisitar o auxílio das Forças Armadas. Talvez porque o medo é individual, não oferece cenas coletivas de barbárie como as que se viram nos últimos dias no Rio (e, não convém esquecer, em São Paulo anos atrás).
A omissão, para dizer o menos, das autoridades incubou o ovo da serpente. Abortá-lo agora é infinitamente mais complicado, até porque o recurso ao Exército para ajudar na invasão do Complexo do Alemão é uma confissão tácita de que a polícia, por si só, não consegue ganhar a guerra.
Até entendo o horror que muitos, esta Folha inclusive, expressam ante a hipótese de as Forças Armadas serem chamadas em auxílio da polícia. Há argumentos fortes para rejeitar a ideia.
O problema é que a alternativa parece ser a de devolver a Vila Cruzeiro aos antigos "donos". Se eles toparem ficar quietos no morro, sem o fogaréu que acenderam no asfalto, acabará sendo a acomodação de sempre. E a serpente parirá um ovo muito mais robusto lá na frente.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O que motivou a revolta de Gilmar Mendes

O leitor do blog pode ficar se perguntando o motivo de o Ministro Gilmar Mendes ter feito uma resposta dão dura a Elio Gaspari. Pois bem, segue o texto primeiro de Gaspari, publicado na FSP e no Midianews em 3/11/2010.

Gilmar atirou no Congresso e no STF

ELIO GASPARI

No lusco-fusco da eleição de Dilma Rousseff não se pode deixar de registrar que durou exatamente seis meses e sete dias a discrição obsequiosa que o ministro Gilmar Mendes concedeu aos seus pares ao deixar a presidência da Casa.
Habitualmente, os ministros do Supremo falam pouco fora do tribunal e, desde abril passado, quando entregou a cadeira a Cezar Peluso, Gilmar manteve-se dentro da norma. Na última sexta feira, depois de ter sido derrotado no julgamento da vigência da Lei da Ficha Limpa, ele voltou ao proscênio.
Referindo-se à aprovação do projeto pelo Parlamento, disse o seguinte: "O Congresso estava de cócoras. Por quê? Porque não queria discutir isso racionalmente, porque ninguém queria se dizer contra a Ficha Limpa." Gilmar Mendes tem todo o direito de dizer que o Congresso estava "de cócoras". Aceitando-se seu vocabulário, pode-se fazer uma incursão no terreno da cocorologia.
Como o ministro classificaria a decisão do STF em 1936, negando um habeas corpus a Olga Benário, cujos advogados argumentavam que ela tinha no ventre uma criança concebida no Brasil?
É fácil espancar o Congresso, mas em 1968 a Câmara dos Deputados negou ao Executivo a licença para a abertura do processo de cassação do mandato do deputado Marcio Moreira Alves. Até os sorveteiros sabiam que com isso ele seria fechado pelos militares. Foi. No Supremo, onde dois ministros foram imediatamente cassados, dois outros deixaram a Corte. Os demais ficaram sentados.
Em 1974, foi o Supremo quem transferiu da Câmara para a cadeia o deputado Francisco Pinto, por ter chamado o general chileno Augusto Pinochet de ditador. O doutor Gilmar deveria deixar de lado as flexões dos joelhos alheios. Sentados ou em pé, tanto ministros do Supremo como parlamentares tomam decisões com as quais pode-se concordar ou discordar. É o jogo jogado. Na mesma entrevista, referindo-se à decisão do STF pela imediata vigência da Lei da Ficha Limpa, Gilmar acrescentou:
"Foi um erro ter colocado isto em julgamento."
De quem foi o erro? De um "capinha" que esqueceu o processo sobre a mesa do presidente Cesar Peluzo? Dos ministros que votaram numa posição contrária à de Gilmar?
Pode-se sonhar com o dia em que o Supremo Tribunal Federal brasileiro funcione com a etiqueta da corte americana, onde não só os ministros não comentam sentenças do tribunal fora das sessões, como não se lhes deve dirigir a palavra nos corredores, a menos que eles tomem a iniciativa. Ministro criticando colega ou decisão da Casa é algo impensável. Quando Thurgood Marshall, aos 82 anos, fez um comentário depreciativo sobre um futuro colega, seus pares relevaram. O primeiro juiz negro da corte estava senil e meses depois renunciou.
Gilmar Mendes foi deselegante em relação ao Parlamento e impertinente para com seus colegas, com quem está obrigado a uma convivência diária, em condições de igualdade.
O pronunciamento em que o jurisconsulto enunciou os aspectos cocorológicos das decisões legislativas deu-se numa entrevista à rádio CBN, em Foz do Iguaçu. Ficaria melhor se tivesse falado vestindo a toga, no plenário, ou durante uma visita ao Congresso.

Resposta de Gaspari para Gilmar

Depois de Gilmar tê-lo chamado de admirador da ditadura e macaqueador de americano, Elio Gaspari responde hoje na FSP e na Gazetaonline:
Juracy.Magalhães@edu para Gilmar.Mendes@org
Ilustre ministro Gilmar Mendes,
Faz quase 50 anos. Designado embaixador em Washington, dei uma breve declaração, com a qual a esquerda fustigou-me durante muito tempo, tachando-me de entreguista: "O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil."
O senhor escreveu na "Folha de S.Paulo" que eu disse isso porque estava "entusiasmado pelo estilo de vida dos ?irmãos do Norte?". Não barateie biografias alheias, ministro, nem tome licenças com a minha. Fui tenente revoltoso em 1930, governador da Bahia, presidente da Petrobras e da Vale, senador, ministro das Relações Exteriores e da Justiça. Não lhe fica bem repetir a vulgata esquerdista, sobretudo quando o senhor dispõe de meios para ilustrar-se. Peça à biblioteca do Supremo Tribunal Federal um exemplar do livro "Juracy Magalhães - o último tenente". Nele encontrará um depoimento que dei ao jornalista José Alberto Gueiros. À página 325 lerá que, antes da minha partida para Washington, um repórter perguntou "com que espírito" eu iria assumir esse cargo.
Respondí:
"O Brasil fez duas guerras como aliado dos Estados Unidos e nunca se arrependeu. Por isso eu digo que o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil."
A primeira parte da resposta foi esquecida. Nunca fui o pacóvio que a esquerda propalou e o senhor macaqueou. Cito-me, para colocar as coisas no lugar:
"Se o regime democrático é bom para os Estados Unidos, é claro que também é bom para o Brasil. Se a liberdade de pensamento faz bem aos Estados Unidos, não faz mal ao Brasil. (...) Em suma: as coisas boas da América do Norte são também muito boas para nós. Não falei do que é mau, nocivo ou vicioso. A frase foi: O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil. Eu nunca disse: O que é bom para a União Soviética também é bom para o Brasil, porque aí estaria condenando meu país a um despenhadeiro."
Falo-lhe com um passado de quem não aceitou a ditadura de 1937 e apoiou a de 1964. A esquerda deu um sentido absolutista às minhas palavras, falseando-as. Frases que saem do nada ou adquirem sentido estranho ao contexto são comuns. O general De Gaulle nunca disse que "o Brasil não é um país sério". Talvez o senhor lembre de uma declaração do marechal Costa e Silva ao embarcar para o exterior, em 1966, com a candidatura a presidente já lançada: "Vou ministro e volto ministro." Parecia um desafio ao marechal Castello Branco. Coisa alguma. Omitiu-se a pergunta do repórter: "O senhor vai ministro e volta candidato?"
Aproveito para comentar sua desenvoltura vocabular. Em outubro, em Foz do Iguaçu, o senhor deu uma entrevista à CBN e disse o seguinte a respeito da aprovação da Lei da Ficha Limpa pelo Parlamento:
"O Congresso estava de cócoras. Por quê? Porque não queria discutir isso racionalmente, porque ninguém queria se dizer contra a Ficha Limpa."
Entendo seu raciocínio. O Congresso sentiu-se pressionado, mas isso é do jogo. O Aurélio Buarque de Holanda, a quem consultei, lembrou-me que, "de cócoras", fica-se como as "rãs, a desempenhar lastimoso papel". Dê um trato à qualidade de suas referências históricas e um polimento à sua prosa, pelo menos quando se referir a um poder republicano.
Atenciosamente,
Juracy Magalhães

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Réquiem de um amor

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor,
A dor que deveras sente.
(Fernando Pessoa)

Eu tenho nojo de você e tenho nojo de mim por ter suportado esse amor e até de ter também amado. O que ele poderia dizer diante desse decreto? Pensou em responder, mas se limitou a arquear as sobrancelhas. Não sabe bem por que, de repente, pensou naquelas duas estatuetas entrelaçadas que vira no Louvre. Uma vinculada à outra de modo definitivo, pelo mármore e a mão do artista. Diria uma para outra: eu sinto nojo desse seu amor, dessa sua servidão, dessa xifopagia eterna. Teriam dito mesmo isso? Sequer se lembrava se estavam mesmo em Paris ou se foram vistas no Prado. Talvez no MoMA como pedras levemente separadas por traços finos que ora deixavam notar o corpo de cada uma, ora tornavam tudo indistinguível, entremeado como fossem mesmo feitas uma para outra.

De longe se podia notar mais claramente que se abraçavam e se beijavam numa sensualidade que, apesar de pétrea, era comovente. Amor assim não haveria e, no entanto, uma estaria a dizer calmamente para a outra: um nojo. Esqueceu-se tão rápido quanto lembrara da imagem e pensou na princesa persa, bela, formosa, mas que possuía um hálito azedo, talvez produto de uma bactéria sulfurosa que regurgitava no estômago seus vapores fenólicos. Uma princesa persa linda, mas, ao mesmo tempo, um nojo, pois quem se atreveria a beijar aquela boca, quem sequer a ouviria também sussurrar: eu tenho nojo de você e tenho nojo de mim? Pois Eva Brown não suportara a halitose de Hitler, embora o general Johannes Blaschke tenha registrado secretamente as queixas da primeira-dama nazista? Jó confessara: “o meu hálito é intolerável à minha mulher” (19,17).

Poderia ser isso mesmo, ele deveria ter um hálito assim e até bafejou contra a palma da mão aberta entre a boca e o nariz para conferir, mas nada sentira. Vai ver que o olfato se acostumara com o cheiro. Entretanto, dizia de si para si, reconfortando-se, tudo tem um cheiro, tudo tem um jeito, tudo tem uma história que sempre poderá ser estranha ou nauseabunda sob um determinado ângulo, gosto ou pensar. O nojo poderia não ser do hálito, cogitou, mas do hábito ou do caráter. Então seria tão perverso ou pervertido quanto Claudius de Hamlet, Iago de Othelo ou, quem sabe, Mr Hyde de O Médico e O Monstro. Pior: um vilão clichê, meio Dom Juan, metade Casanova, inteiramente avinagrado feito vinho de véspera, aberto e podre.

De sobressalto, deixou de lado Jó, Hitler e os vilões, a princesa e as estatuetas, e imaginou que tudo fora um sonho, um pesadelo, talvez. Não escutara jamais aqueles dizeres. Nojo é a última fronteira da dignidade. De um personagem ou de uma história. Como pode alguém dizer que ama e se enojar de amar, de ter amado? Amor sob condição, amor sob validade curta, amor sem amor, só pode, dizia o abajur com um ar de pai, um abajur que não lançava luz apenas à leitura do livro, mas ao espírito conturbado, à alma dolorida que viajava de Paris a Madrid e Nova York sem sair do lugar, apenas para não ter à lembrança de que as palavras haviam sido ditas de uma boca que antes se calara em sua boca, sem nojo, sem os vapores da princesa persa ou a perversão de Iago, numa xifopagia infinita, mesmo que provisória, temporária, mas tão entranha que, como as estatuetas, confundiam-se.

Fechou o livro que supostamente lia e foi direto para a janela de onde vinha aquele vento oeste, frio e forte que lhe trazia a noite da cidade, onde seu amor, seu ex-amor se perdia à procura de quem sabe outro nojo. Sentiu que seu coração parecia desacelerar ao ritmo de um suor criogênico, o ar a faltar e o estômago convulsionado. Firmou-se na grade da sacada e jura que ouviu o vento soprar: calma, todo enjôo um dia passa. E a dor também. Deixou-se ficar às primeiras réstias da manhã. Pouco se sabe depois disso. De seu enjôo, de seu amor, de sua vida.

domingo, 14 de novembro de 2010

Gaspari, a ditadura e a Suprema Corte - Resposta de Gilmar Mendes

Gilmar Mendes, em artigo publicado na FSP de hoje, 14/10/2010, deu uma resposta no seu estilo às críticas de Elio Gaspari à decisão do STF no caso da Ficha-Limpa:
Faz quase 50 anos: designado embaixador em Washington pelo governo de 64, o general Juracy Magalhães, entusiasmado pelo estilo de vida dos "irmãos do norte", soltou a frase infeliz: "O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil". Até hoje faz escola. Admirador da ditadura brasileira e macaqueador dos americanos, Elio Gaspari gosta muito de comparar modos e feitos da Suprema Corte com o nosso Supremo Tribunal. Erra feio, até porque cada jurisdição tem feições próprias. Além da disparidade dos sistemas jurídicos -lá vige o "common law", enquanto aqui se adota o direito romano-, beira o nonsense confrontar a aplicação da vetusta Carta americana de seis artigos com a da imberbe Constituição pátria de quase 300 dispositivos, muitos dos quais ainda a requerer complementação legislativa. Se, por teimosia, despreparo ou autoindulgência, o jornalista persistir em traçar paralelos entre instituições ou culturas tão díspares, deveria -a exigir-se um mínimo de honestidade intelectual- citar também algumas das vicissitudes que acabaram por fazer a corte americana avalizar, durante décadas, regimes de intolerância, como a terrível escravidão (a exemplo do caso Dredd Scott) ou, para nem ir tão longe, casuísmos polêmicos, como os que permearam o caso Bush versus Gore. Decisões controvertidas e outros percalços fazem parte do aprendizado ou da história de qualquer magistratura, cujo grau de transparência muito serve ao fortalecimento da democracia. Daí por que não cabe sonhar, como quer Gaspari, com "a etiqueta da corte americana". Felizmente -e muito em função dos esforços de aproximação dos últimos anos-, o Supremo abandonou a torre de marfim que tanto o distanciava dos cidadãos brasileiros. Os julgamentos, que foram sempre públicos, hoje em dia estão mais acessíveis pela transmissão simultânea via Rádio e TV Justiça. Por isso, não sobram desculpas às desinformações que o colunista veicula em artigos que mais servem ao escracho do que ao esclarecimento. Se houvesse assistido às sessões relativas à constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, Gaspari saberia que a autocrítica -e não crítica- que fiz acerca da oportunidade do segundo julgamento teve lugar no plenário da corte, perante meus pares. Aliás, reafirmo as posições ali externadas, que, longe de ferirem o decoro ou a elegância, contribuem para o enriquecimento do debate, o primeiro passo para o consenso. Mas não: na pressa em escancarar a notória americanofilia, Gaspari prefere incorrer em distorções grotescas, na já bem conhecida avidez de apontar, à patuleia, as falhas de Pindorama, para usar o corrosivo jargão do jornalista. Uma pena. Não fosse assim, poderia ver os esforços que todo o Judiciário vem fazendo rumo à modernização, capitaneado pelo Supremo, com o auxílio do Conselho Nacional de Justiça. O mesmo e velho Supremo que bancou sucessivos habeas corpus para os dissidentes da ditadura, enquanto áulicos do regime bajulavam generais. Pela resistência e pela envergadura, o Supremo continua personificando, para o brasileiro, a estabilidade das instituições, da democracia -conquista difícil e das mais valiosas -, agora um valor em si mesmo para a população. Esses e outros aspectos importantes passam batido na visão imediatista e popularesca de gente como Gaspari, mais preocupada em criticar do que em compreender a realidade brasileira.

Dica de livro: Diversity in Europe

Diversity in Europe. Dilemmas of differential treatment in theory and practice. Editado por Gideon Calder e Emanuela Ceva. Routledge, 2010.

Desde a proibição de símbolos religiosos em espaços públicos à previsão de aborto, casos recentes na Europa puseram outra vez em destaque sérios dilemas sobre a melhor forma de o Estado responder às reivindicações de indivíduos ou grupos, de modo a terem seus valores e crenças tratados de forma justa pelo direito.
O livro "Diversidade na Europa" utiliza os recursos da teoria política, além da análise comparativa das práticas contemporâneas em diferentes países (Alemanha, Itália, Turquia, Espanha e Reino Unido), para compreender os desafios que a diversidade coloca para as democracias europeias. É ponto central da discussão saber se o compromisso democrático de igualdade implica tratamento uniforme pelo direito ou se é compatível com o atendimento a alguns pedidos de cidadãos no sentido de serem tratados de forma diferente, para acomodar sua particularidade éticas, culturais e religiosas. O tratamento diferenciado pode assumir várias formas como, por exemplo, o reconhecimento a grupos ou indivíduos de direitos a isenções legais ou à objeção de consciência. Ao debater o tema sob vários ângulos, o livro apresenta o repertório de instrumentos à disposição das democracias para enfrentar os desafios da diversidade em geral.

Suprema Corte dos EUA se recusa a bloquear a política "Don't ask, don't tell"

A Suprema Corte dos EUA recusou nesta sexta-feira, 12/10/2010, um pedido do grupo de direitos homoafetivos, Log Cabin Republicans, para por fim ao embargo militar aos assumidamente gays nas forças armadas dos EUA.
A controversa judicial permanecerá porém, enquanto um tribunal federal de apelação analisa um recurso contra a decisão da juíza federal, Virginia Phillips, que considerou a política "Don't ask, Don't Tell" (os membros homossexuais do serviço militar não podem assumir publicamente sua condição) como inconstitucional, por violar os direitos de gays, impedindo o Pentágono de aplicá-la. No entanto, o recurso do Governo contra a decisão, deixa, por enquanto, intacta a política. A eficácia da sentença de primeiro grau durou apenas oito dias. Para o grupo, a decisão foi uma decepção, embora mantenha viva a esperança de vitória judicial:
"Com a probabilidade cada vez menor de a política "Don't Ask, Don't Tell" ser revogada pelo Congresso, o recurso ao Judiciário continua a ser, talvez, a avenida mais viável para acabar com essa política inconstitucional. Nós dos Log Cabin Republicans vamos continuar a lutar para proteger os direitos constitucionais de todos os americanos que querem prestar o serviço militar independente de sua orientação sexual".

sábado, 13 de novembro de 2010

Controle de constitucionalidade e populismo judicial nos EUA

Em um campo que explode com a normatividade, David Strauss escreveu um artigo , intitulado The Modernizing Mission of Judicial Review [A Missão Modernizadora do Controle de Constitucionalidade], que fornece uma descrição verdadeiramente iluminante da racionalidade que subjaz a muitas das recentes decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos. A Corte, ele argumenta, muitas vezes segue um princípio que ele descreve como "modernização", composto por dois elementos básicos. O primeiro é definido por uma espécie de análise rigorosa de qualquer lei que considera "fora de sintonia com o sentimento popular atual" que resultará na sua invalidação, se houver qualquer fundamento doutrinário possível para fazê-lo. O segundo elemento é dado pela reconsideração que a Corte faz da sua decisão, se eventos subseqüentes mostrarem que sua conclusão estava errada e que a lei realmente tinha o apoio popular. A "modernização" raramente é invocada como a única base para uma decisão, de acordo com Strauss, mas não é um tropismo subconsciente ou uma conivência clandestina. Em vez disso, ela funciona como um princípio de apoio que aparece regularmente na fundamentação racional.
Strauss sustenta a sua observação com uma extensa pesquisa e reflexão sobre as recentes decisões da Corte. Exemplos para o primeiro elemento de modernização são as decisões sobre a Oitava Emenda, especificamente Roper v. Simmons (que proíbe a execução de um menor), Atkins v. Virginia (proibindo a execução de um deficiente mental), e Kennedy v. Louisiana (proibindo a execução do estuprador não-letal de um filho). Em todos esses casos, a Corte afirmou que a pena de morte era uma disposição arcaica que conflitava com o teor geral da opinião popular. Exemplos para o segundo elemento de modernização são a decisão de 1972, em Furman v. Geórgia, quando a Corte declarou ser a pena capital cruel e incomum, e as tomadas em 1976, inclusive Gregg v. Geórgia, em que manteve a pena de morte após os 35 Estados reeditarem leis prevendo a pena de morte. Outros casos que revelariam inclinações de modernização seriam Virginia v. U.S. que derrubou a recusa do VMI a admitir mulheres, Griswold v. Connecticut e Lawrence v. Texas. Strauss cita alguns outros casos que levam o seu argumento a extremos, como Moore v. City of East Cleveland. Em geral, contudo, sua tese é convincente. Como se trata de um artigo de direito constitucional, seria realmente estranho que, depois de realizar um exame descritivo e normativo do assunto, não tivesse nada a dizer. Strauss continua a fornecer uma avaliação do padrão que descobre nas decisões. Mas ele resiste à tentação natural de seu estudo apresentar-se como uma solução para o dilema de revisão judicial ou condená-la como prova de que devesse ser abolida em sua totalidade. Modernização, diz ele, tem algumas características boas e outras más. Uma das suas características boas é apresetanda pelo primeiro elemento (invalidando leis arcaicas) que serve como uma função de reforço da democracia. A Corte invalida as leis que o público não quer, mas que foram aprovadas devido à inércia institucional que atinge o processo legislativo. Outra boa característica da modernização é que seu segundo elemento (contenção face ao apoio renovado) remete para o processo político, de modo que a Corte, ao julgar mal o sentimento popular, dispõe-se a mudar de posição. Estas duas características integram os dois princípios básicos da Escola do Processo Legal (Legal Process School), sendo a primeira essencialmente igual a U.S. v Carolene Products, às análises de Choper-Ely; e a segunda, semelhante à tese da "virtude passiva" de Bickel. Todas elas levantam a questão da competência jurisdicional, é claro, mas Strauss prefere referir-se à modernização como um instrumento que "lembra o papel tradicional dos tribunais de direito comum". Esse, aliás, foi um ponto a que ele se dedicou em seus escritos anteriores sobre o processo de tomada de decisão constitucional em geral. (Em uma notável exibição de autocontenção acadêmica, ele se recusa a citar-se).
Há também, segundo Strauss, uma séria desvantagem para a abordagem da modernização. "O problema é que os tribunais podem ceder demais ao processo político, deixando, portanto, de aplicar os princípios que os tribunais, e apenas os tribunais, são adequados para aplicar." (p. 900). Isso parece um ponto crucial, talvez porque eu concordo com ele (eu realmente não concordo com Strauss sobre as boas características da modernização, porque elas lidam com o conceito de "democracia" e os EUA não são realmente uma "democracia" - são uma república representativa). A razão pela qual eu aprecio a crítica de Strauss de modernização é que ela resiste ao que eu chamaria de virada populista na teoria constitucional moderna. Ambos originalistas e as teorias evolucionistas adquiriram um sabor fortemente populista nos últimos anos. A antiga abordagem do originalismo era focada na intenção dos constituintes, membros de uma elite muito restrita tanto em termos de riqueza quanto em termos de educação. Sua nova versão repousa sobre as crenças da ratificação publica, ou seja, de todo o povo americano da época em que o documento foi apresentado para aprovação. Da mesma forma, as teorias evolucionistas eram tradicionalmente baseadas nas habilidades especiais do judiciário, desenvolvidas por membros de uma profissão exclusiva. As atuais teorias evolutivas, ao contrário, centram-se nas atitudes do público, refletidas eventos observáveis, tais como os movimentos sociais, as eleições decisivas ou o discurso público.
A guinada para o populismo resolve algumas dificuldades que têm atormentado tanto originalistas quanto evolucionistas. Ela libera originalismo do culto ancestral e indecoroso de um pequeno grupo de proprietários, que compunham uma quase-aristocracia escravista. Ela liberta os evolucionistas de invocar as decisões de uma classe restrita de juristas idosos, pertencente à classe média alta ou rica, cuja capacidade de discernimento dos sentimentos populares é no mínimo questionável. Mas essas vantagens têm um custo alto, pois subestimam o valor básico do controle de constitucionalidade que levaram à sua inclusão em praticamente todas as Constituições modernas em todo o mundo. O controle de constitucionalidade é o primeiro mecanismo juridicamente estabelecido no mundo ocidental (e, talvez, o primeiro desde os profetas hebreus) que pode efetivamente controlar a autoridade pública que possui, segundo Weber, o monopólio da força legítima. Com efeito, ele domestica o direito de revolução que os filósofos políticos ocidentais defendiam no milênio passado, sem terem a menor ideia de como efetivar.
Claro que o controle jurisdicional de constitucionalidade é contra-majoritário, para invocar a Escola do Processo Legal mais uma vez. Ele é projetado para impor normas socialmente aceitas sobre a força governante na sociedade, de modo a conter a tendência inevitável de qualquer governante de trair os princípios básicos sobre os quais seu governo se baseia. É certo que o controle é realizado por uma elite, mas assim são todas as outras funções governamentais em todo o sistema, exceto na democracia direta, que é uma forma de governo que nunca foi aplicada com sucesso em qualquer lugar maior que uma aldeia. Os altos dignatários do poder político - o Presidente, o Gabinete, as agências independentes, os legisladores - são todos igualmente membros da elite. Os pobres e a classe operária nunca podem eleger seus próprios membros ao Legislativo, porque logo que são eleitos, eles deixam de ser pobres e classe trabalhadora.
As teorias populistas tornaram-se tão populares nos dias de hoje, especialmente para os teóricos da evolução (entre os quais, obviamente, encontra-se Strauss), que eu realmente esperava que ele utilizasse sua descrição da modernização para elogiá-las. Fiquei verdadeiramente surpreendido quando ele apresentou a conta das vantagens da modernização - uma discussão que se vincula fortemente ao pensamento populista - com uma crítica ao padrão de comportamento judicial que ele havia descoberto. Não é fácil, nestes dias, escrever algo sobre o controle de constitucionalidade que seja verdadeiramente esclarecedor. Escrever algo que não seja apenas surpreendente, mas também esclarecedor é uma coisa rara. É por isso que o artigo Strauss vale a pena ser lido.
O texto é uma adaptação do artigo de

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Infeliz dos infelizes

Um infeliz consegue fazer alguém feliz? Perguntou o suicida. Impossibilidade ontológica e funcional, responderam as águas em sua passividade mórbida. Do outro lado do mundo, alguém tentava entender essas palavras em outra língua e, sob os pés e nos pulmões, outras águas. Eram as chuvas do verão que inundavam o mesmo desencantamento e, em coro, diziam: Infeliz dos infelizes, porque deles será o reino das mágoas.

Retratos de uma eleição inacabada

O dinheiro corrompe, a ganância, seu combustível essencial, corrompe muito mais. Os humanistas cívicos italianos do século XV temiam que os mecenas no poder corrompessem o projeto do bem-comum. Naquela época, porém, as vigorosas repúblicas de cidades como Florença e Milão eram governadas apenas pelas famílias tradicionais, não necessariamente as mais ricas. E muitos daqueles humanistas viam nelas, por crença ou conveniência, um celeiro da virtude republicana.
Falava-se em soberania popular, uma verdadeira revolução no pensamento monárquico e teológico reinante, mas povo era um conceito tão restrito, quanto o estatuto civil das mulheres. Até os novos ricos mercadores eram barrados.
O constitucionalismo nasceu, em parte, com essa inspiração. A república seria um processo eletivo do povo sábio, fonte de todo poder e do melhor governo. O dinheiro não haveria de corroer o interesse público, apenas pré-selecionaria os homens capazes de discernimento. Ricos, não precisariam fazer da política um meio de vida.
Foram mais de cem anos para se utilizar a palavra democracia como uma forma universal de soberania popular. Ricos e pobres poderiam votar e ser votados. Todos poderiam ser eleitos. O devido processo eleitoral se imunizaria das influências do poder econômico e político, sem o determinismo da herança ou da consanguinidade.
Mais de cem anos depois daqueles cem anos nos damos conta que as promessas foram quebradas. O dinheiro continua dando as cartas. Ser deputado custa dinheiro, ser senador mais ainda. Ser presidente, nem se fala. As campanhas dos congressistas, há pouco eleitos, receberam oficialmente mais de R$ 800 milhões. Uma pechincha. As empreiteiras ajudaram a eleger mais de 50% deles. Ao campeão dos votos mineiros ao Senado, foram pouco mais de R$ 5 milhões. A agroindústria doou só a Blairo Maggi cerca de R$ 2,1 milhões. Pura benemerência e espírito público.
A polêmica Lei da Ficha Limpa não impediu que, pelo menos 65 parlamentares que respondiam a ações no STF fossem eleitos. Jader Barbalho, como vimos, foi barrado por ela no Supremo. Mas esperam julgamento outros tantos como Paulo Maluf (PP-SP), Natan Donadon (PMDB-RO) e Pedro Henry (PP-MT). Compra de votos, fraudes em licitação e remessas de divisas para o exterior são alguns dos delitos mais comuns das condenações. Mas como cada caso é um caso, sabem-se lá quantos pularão a cerca judiciária.
A hereditariedade, enfim, permanece como fator decisivo dentro de nossa democracia. Muitos campeões de votos levam sobrenomes de tradição. Em Alagoas, o filho do senador Renan Calheiros, Renan Filho, recebeu mais de 140 mil votos e foi eleito deputado federal. Benedito de Lira (PP-AL) elegeu-se senador e fez de seu filho Arthur Lira (PP-AL) deputado federal. Ciro Nogueira (PP-PI) foi para o Senado e a sua mulher, Iracema Portela (PP-PI), para a Câmara de Deputados. Foi o que também fez Romero Jucá (PMDB-RR) e sua ex-mulher Teresa Jucá (PMDB-RR).
Vital Filho (PMDB-PB) e Wilson Santiago (PMDB-PB) seguiram quase o mesmo roteiro, ambos igualmente senadores. Vital ajudou a mãe, Nilda Gondim (PMDB-PB), e Wilson apoiou Wilsinho (PMDB-PB) à conquista de uma vaga na Câmara. Sem mandatos famosos também fizeram sua parte. José Dirceu (PT-SP) e Virgílio Guimarães (PT-MG) contribuiram para que os filhos Zeca Dirceu (PT-PR) e Gabriel Guimarães (PT-MG), respectivamente, fossem eleitos deputados federais. São alguns exemplos apenas.
E ainda há os donos da mídia, aqueles que dominam os meios de comunicação regionais e que são capazes de, em nome da liberdade de imprensa, exercer plenamente a sua liberdade de empresa eleitoral. Notícias filtradas, críticas recolhidas e uma opinião pública sob censura, resultando de tudo uma vontade política deformada. Mas isso discutiremos numa outra vez, num próximo capítulo. Fica, todavia, a chamada: a democracia é um processo, um aprendizado, uma promessa por cumprir-se.