segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Sobre Livros e Leitura

Infelizmente, não sabemos se Shakespeare foi um homem que viajou muito. Mas a Itália, com certeza, é um país que ele deve ter conhecido, tantas são as peças cujas narrativas ocorrem lá. Essa paixão se deve ao esplendor artístico das cidades italianas durante o período do Renascimento. Em verdade, a Itália sempre fascinou escritores e músicos, os artistas em geral, de Goethe a Freud (o escritor), de Mozart a Beethoven. Shakespeare viveu o fim do Renascimento, movimento que durou em torno de três séculos. O mundo dos humanistas, homens de vastíssima cultura.
O Renascimento europeu inicia-se no fim do século XIII e vai até as portas do século XVII. A Itália foi o berço e o principal recanto de prosperidade desse ressurgir cultural que mudou a história do ocidente e do mundo inteiro. Lembro o Renascimento – o retorno ao ideal greco-romano – para tocar num assunto que muito me incomoda. É de o quanto a especialização está matando o humanismo que o Renascimento nos legou. Falar de humanismo é até mesmo um exagero, digamos que um pouco de informação sobre o passado e sobre o mundo que nos cerca.
Ler um bom livro, hoje, é uma tarefa hercúlea para médicos, advogados, engenheiros, professores, juízes etc. Todo pequeno ou grande profissional só conhece a matéria em que trabalha. Mesmo aqueles que pertencem à área de ciências humanas – Direito, Sociologia, História, Comunicação, Economia, que precisam escrever todos os dias - não conseguem opinar sobre nada que não pertença ao seu universo de estudo. Encontrar alguém com uma cultura diversificada é como encontrar um diamante na calçada!
Os livros mais lidos são pouco mais que caça-níqueis, não passam de temas repetidos à exaustão. Mesmo assim, são apresentados como grandes novidades. As editoras precisam faturar, lucrar. Daí “empurram” livros que dão calafrios no leitor mais exigente. Esses livros ou ‘mercadorias’ não ajudam ninguém a pensar.
Algumas vezes fico calado em rodas de conversa – algo torturante para mim, pois adoro conversar – tal é a quantidade de bobagens ditas por pessoas de formação educacional muito pra lá de “nível superior” em suas opiniões sobre questões mais sábias. A conversa chega, às vezes, a ser tão despropositada que você passa por idiota, pelo simples fato de o mundo dessas pessoas girar em torno de suas profissões, do que veem na Internet, ou do que dizem os jornais do dia. Suas opiniões são centradas em um único conteúdo. Não há uma visão do todo. Sei que estou sendo muito duro. Mas, não estou pedindo a ninguém para citar clássicos em mesa de bar.
O que nos estarrece é ver bobagens esotéricas, auto-ajuda e pequenos dramas de natureza pessoal tratados como Literatura. Como é que pessoas pós-graduadas em universidades leem essas coisas? Mário Vargas Llosa, numa recente entrevista no Brasil, chamou essas pessoas muito “educadas”, bem empregadas e alheias ao mundo – que só conhecem o seu métier – de: “analfabetos funcionais”. Gostaria de dizer que essa declaração é um exagero, mas, infelizmente, não é. Como também não precisamos ser tão duros quanto a Goethe, que disse: “Quem de cinco séculos não é capaz de dar conta, não merece estar por aqui”. Leiam os Clássicos!
Theófilo Silva, Presidente da Sociedade Shakespeare de Brasília e Colaborador da Rádio

domingo, 30 de agosto de 2009

Sigilo Bancário: OCDE e a luta contra a evasão fiscal

A OCDE coordena os trabalhos do Forum Global sobre Tributação (FGT) que se destina a desenvolver parâmetros internacionais sobre transferência e troca de informações em matéria fiscal. Especialmente neste último sentido, tem-se estimulado a celebração de acordos bilaterais, em que sejam claramente definidas as autoridades responsáveis pela sua execução e a criação de salvaguardas apropriadas para garantir uma adequada proteção dos direitos dos contribuintes e a confidencialidade de seus assuntos fiscais. Para tanto, foi elaborada uma convenção-modelo que deve ser usada pelos países com roteiro básico de seus acordos.
As iniciativas não param por aí. Os princípios sobre transparência e troca de informações, desenvolvidos pelo FGT, foram aceitos por vários países e pelo Comitê de Experts sobre Cooperação Internacional sobre Matérias Fiscais, devendo constar no seu projeto de convenção sobre o assunto. Em julho de 2008, os líderes do G8 conclamaram todos os países "que ainda não tivessem implementado integralmente os padrões da OCDE sobre transparência e trocas fiscais a fazê-lo sem demora".
Em abril de 2009, a OCDE elaborou um relatório sobre a adoção dos parâmetros internacionais sobre tributação por 84 países que participaram do Forum Global anual, incluindo os membros da Organização, paraísos fiscais definidos no encontro de 2000, Estados que integram o Comitê da OCDE sobre Assuntos Fiscais como observadores e centros financeiros nominados no encontro de Berlim em junho de 2004. Um relatório conjunto foi aprovado pelos participantes, propondo ações de natureza individual, bilateral e coletiva para enfrentar a questão da evasão fiscal, contando com o apoio do G8 e G20.
O artigo 26 da conveção-modelo é o que tem mais despertado atenção. Ele disciplina a troca de informações fiscais entre os países. A finalidade das trocas é dar efetividade às leis domésticas, inclusive das unidades subnacionais, relativas à tributação. O Estado que receber as informações deve tratá-las como secretas da mesma maneira que faz com os dados obtidos com base nas leis internas, devendo ser reveladas apenas para pessoas e autoridades (incluindo juízes e órgãos administrativos) com poderes de fiscalização, controle, balanço e persecução em matéria tributária. Tais agentes devem usar as informações somente para tais propósitos, embora possam valer-se delas em processos judiciais e como fundamento de decisões judiciais. Nenhum Estado, contudo, deve ser obrigado a adotar medidas administrativas contrárias às leis e práticas administrativas de um ou outro contratante. Assim também não terá de fornecer informações que não sejam obteníveis de acordo com as leis ou o normal curso da administração de ambos ou que revelarem segredo comercial, industrial ou profissional e ainda que sejam contrárias à ordem pública. Essa disposição não se aplica ao sigilo bancário, conforme dispõe o item 5 daquele artigo.
A respeito desse sigilo, a Organização publicou em 2000 "A Ampliação do Acesso à Informação Bancária para Fins Tributários". Em uma das orientações, aponta-se que "todos os países membros deveriam permitir o acesso a informações bancárias, direta ou indiretamente, para todos os propósitos fiscaisos, de modo que as autoridades tributárias possam cumprirplenamente suas responsabilidades de incrementar as receitas e se envolver efetivamente com a troca de informações com seus parceiros de tratado". É interessante observar que as resistências iniciais foram sendo superadas. Diversos paraísos fiscais têm firmado acordos com países da OCDE e, com a adesão da Áustria, Bélgica, Luxemburgo e Suíça, todos os membros da Organização agora seguem a orientação.

Sigilo bancário: A Suíça começa a ceder. Mas até onde?

De acordo com o ministro francês do Orçamento, Eric Woerth, em entrevista a "le Journal du Dimanche", a França recebeu a lista de 3.000 contribuintes que possuíam contas em bancos suíços. Muitas delas, de acordo com Woerth, serviriam de refúgio a recursos oriundos de evasão fiscal. Um acordo entre os dois países possibilitou a informação.
Recentemente, a Suíça concordou em fornecer aos Estados Unidos os nomes de 4.450 contribuintes norte-americanos suspeitos de manterem contas secretas com a ajuda do banco suíço UBS AG. Muitos deles já estão respondendo a processos civis e penais por fraudes fiscais. A pressão internacional tem sido grande para que os países que adotam um sistema rígido de sigilo bancário, como a Suíça, flexibilizem suas regras, argumentando-se que o crime organizado tem se valido de tais expedientes para esconder seu dinheiro.
Um encontro das trinta nações da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, realizado em abril, resolveu impor sanções econômicas contra os países que se recusarem a adotar as diretrizes, por ela traçadas, para troca de informações fiscais. Há três semanas, durante a reunião do G20, assim como ocorreu com o G8, houve uma declaração pública de combate aos paraísos fiscais como forma de "moralização do capitalismo financeiro."
De acordo com as autoridades suíças, o país manterá suas regras sobre o sigilo bancário, embora possa concordar com a assinatura de acordos bilaterais que as flexibilizem. Tudo a depender do caso.
Muitos devem se recordar que uma cooperação do gênero ocorreu entre o Brasil e a Suíça no caso Maluf. Em vista da ameaça do país europeu de não mais colaborar com a justiça brasileira, as informações bancárias recebidas daquele país tiveram que ser retiradas dos autos da ação penal que o Ministério Público Federal movia contra o ex-prefeito por evasão fiscal, lavagem de dinheiro e sonegação, gerando a extinção do processo.
A razão dada pela Suíça: não havia em seu sistema legal a previsão do crime de evasão fiscal, de modo que a continuidade da demanda importaria descumprimento do acordo celebrado.

Tempo

Eh vida que passa
no regalo do tempo
que me resta.
.......................!

sábado, 29 de agosto de 2009

Dica. Justice Kennedy: O juiz supermédio

A mais nova e badalada juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos, Sonya ­Sotomayor, provavelmente não mudará muita coisa no colegiado. Apenas manterá na Corte a divisão entre quatro conservadores e quatro progressistas. O voto de Minerva continuará com o juiz Anthony Kennedy, chamado de "juiz supermediano" por revelar posições que ora tendem para um lado, ora para outro; ora, muito pelo contrário.
Foi assim que procedeu e definiu a vitória de uma ou outra corrente em temas como ações afirmativas, liberdade religiosa e direitos dos homoafetivos, bem como no reconhecimento do Poder Executivos adotar medidas restritivas às liberdades em casos de terrorismo e na definição da eleição presidencial de 2000. Para muitos, ele não passa de um oportunista, que age por capricho sem qualquer compromisso com uma teoria constitucional consistente.
Pois acaba de sair "Justice Kennedy's Jurisprudence. The Full and Necessary Meaning of Liberty [A Jurisprudência do Juiz Kennedy. O Significado Completo e Necessário da Liberdade]", escrito pelo professor de ciência política da Purdue University-Calumet, Frank J. Colucci. O livro procura mostrar que Kennedy é, não apenas coerente em suas orientações, ao rejeitar as teses originalistas e de restrinção judicial (judicial restraint), como adepto da leitura moral da Constituição no melhor estilo de Ronald Dworkin e Randy Barnett, a defender sistematicamente a liberdade e a dignidade humana mesmo contra a democracia.
Foi nessa linha que se opôs a leis que restringiam a liberdade sexual, inclusive para proteger a autodeterminação dos homossexuais. Entretanto não se tem mostrado simpático aos programas de conscientização racial, por considerá-los muito mais voltados para afirmação de interesses de grupos do que para os direitos individuais de seus membros. Em matéria religiosa, sua oposição a originalistas como Antonin Scalia é flagrante.
Scalia defende que a "cláusula de estabelecimento", a parte da I Emenda à Constituição norte-americana que assegura a liberdade de religião, limita apenas que o Estado seja favorável a um ou outra crença em detrimento das demais. Não haveria, portanto, problemas em dar nome de religiosos a uma escola pública. O contraponto na Corte é apresentado por John Paul Stevens, para quem todo programa de governo que apoie pregações na escola ou identificações religiosas acaba promovendo uma religião em face de outras, o que seria inconstitucional.
Para Kennedy, nenhuma dessas leituras estaria correta, pois a "Establishment Clause" protegeria a liberdade individual antes de definir a relação entre Estado e igreja. Foi assim que se decidiu a favor de programas voltados para livre escolha das escolas (religiosas ou laicas) e não o fez em relação à admissibilidade de haver pregações religiosas nelas. No primeiro caso, entendeu que o programa reforçava a liberdade individual de escolha; no segundo, criava-se uma audiência cativa às ladainhas dos pregadores.
Mesmo sendo católico, Kennedy procurou afastar-se de suas orientações religiosas. Colucci, no entanto, denuncia aqui e ali uma traição de suas crenças, especialmente pelo emprego de uma "argumentação que o aproximaria da retórica do Catolicismo". Ele, por exemplo, ao combater a pena de morte para jovens, em Roper v. Simmons, disse que ela era inadequada por a juventude raramente demonstrar uma "corrupção irrecuperável". Esta seria uma frase tipicamente católica, disseram.
Entretanto, esses deslizes vocabulares não o comprometeram na hora de decidir a favor do aborto. Tampouco em reverter o criticado precedente Bowers v. Hardwick, em 2003, baseando-se no direito que todos têm de ser livres para escolha da orientação sexual, escapando do argumento escorregadio do right to privacy.
A visão de Colucci parece demasiadamente simpática e até condescendente com Kennedy. Vale, no entanto, a leitura para compreensão de como pensam os juízes (daqui e de lá) e, principalmente, como a crítica é vista como instrumento para fortalecer a instituição.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Direito à intimidade (EUA): Drogas e laptops

Mais de 44 kg de maconha, encontrados no carro de Sean P. Haar, não puderam ser usados contra ele como prova de posse ou tráfico de drogas, decidiu a Suprema Corte da Dakota do Sul, Estados Unidos, no dia 27 de agosto. Após abordarem o condutor, os policiais localizaram a marijuana com a ajuda de um cão farejador. Os juízes, entretanto, disseram que os patrulheiros não tinham motivos bastantes e razoáveis para suspeitar de Haar e procederem à busca e apreensão, violando, portanto, o seu direito à privacidade protegido pela Constituição.
Enquanto isso o governo Obama estabeleceu novas diretrizes para realização de buscas e apreensões em laptops e outros instrumentos eletrônicos nas fronteiras dos Estados Unidos. Embora tenham estabelecidos limites ao procedimento, como a autorização superior para manutenção dos aparelhos por mais de cinco dias e a destruição de cópias de dados após sete dias, as novas medidas têm sido criticadas pelos defensores do direito à intimidade que esperavam o fim da prática, adotada no governo Bush, ou, pelo menos, a criação de garantias mais efetivas contra buscas e apreensões desarrazoadas.

Palocci vence caseiro no Supremo (FSP)

Em 16 de março de 2006, Francenildo dos Santos Costa declarou à CPI dos Bingos, reiterando o que havia dito ao jornal O Estado de São Paulo, que Antonio Palocci, então ministro da Fazenda do Governo Lula, frequentava a casa, onde Francenildo trabalhava em Brasília, para se reunir com lobistas e intermediários de negócios com o poder público. No dia seguinte, a revista Época divulgou extrato da conta do caseiro junto à CEF que mostrava depósito de R$ 25 mil, valor incompatível com a sua renda de caseiro. Houve a insinuação de que havia sido comprado pela oposição para inventar a história. Segundo a Época, “apelidada de 'Casa do Espanto', nome de um filme de terror, a casa fora alugada por um grupo antes ligado a Palocci. Dele fazia parte Rogério Buratti, que se transformou no grande acusador do ministro depois de ter sido preso pela Polícia Civil de São Paulo em razão de um inquérito que investiga corrupção em Ribeirão. Buratti descreveu a casa como uma central de negócios e diz que as contas eram pagas por um consórcio de empresas interessadas em fazer negócios com o governo do PT. Em janeiro, quando depôs na CPI, Palocci negou conhecer a casa. O primeiro a contestar essa versão foi Francisco das Chagas, motorista que trabalhou para Buratti. Ele disse ter visto o ministro três ou quatro vezes na casa. O depoimento do caseiro Francenildo Costa foi mais comprometedor.” O depósito, entretanto, colocava sob suspeita a veracidade das palavras do caseiro. Francenildo, claramente constrangido, informou que o dinheiro fora depositado por seu suposto pai, Eurípedes Soares da Silva, como parte de um acordo para que desistisse da idéia de pedir judicialmente o reconhecimento da paternidade. A explicação era correta. Eurípedes confirmou o depósito, embora refutasse ser o pai de Francenildo que, por sua vez, teve de ajuizar a ação de paternidade. Restava um crime a ser apurado: quem quebrara o sigilo bancário de Francenildo. Jorge Mattoso, presidente da CEF, afirmou ter entregue o extrato a Palocci no dia do depoimento de Francenildo à CPI, embora negasse que tivesse havido quebra de sigilo. Palocci, por sua vez, negou peremptoriamente tanto a versão do caseiro, quanto o pedido de quebra do sigilo bancário. A divulgação do extrato à Revista foi atribuída a Marcelo Netto, assessor de imprensa do ministro. Dadas as repercussões do episódio, Palocci saiu do Ministério. De acordo com a denúncia do procurador-geral da República, teria havido um encontro entre Palocci e Mattoso no dia do depoimento. Em seguida ao encontro, o presidente da Caixa retornou com o extrato do caseiro. Palocci, então, conversou 42 vezes, por telefone, com seu assessor de imprensa quem, por sua vez, ligou para o filho, jornalista da “Época”. Por 5 a 4, o STF, em 27 de agosto de 2009, não recebeu a denúncia de quebra de sigilo bancário, formulada pelo procurador-geral da República contra Antonio Palocci. Por 8 a 0, acolheu-a em relação a Jorge Mattoso. Marcelo Netto foi beneficiado pelo empate de 4 a 4. Votaram a favor de Palocci: Gilmar Mendes, Eros Grau, Ricardo Lewandowski, Cezar Peluso e Ellen Gracie. Contra: Cármen Lúcia, Carlos Ayres Britto, Marco Aurélio de Mello e Celso Mello. Joaquim Barbosa e Menezes Direito estavam ausentes. Eros Grau participou do julgamento revelando extrema dificuldade para andar, tendo sido apoiado por dois assessores. Para a imprensa, ele parecia estar ali na base no sacrifício. Em extratos mais significativos dos votos, destacamos em Gilmar Mendes, relator do caso: “A análise exaustiva e pormenorizada dos autos permite concluir que não há elementos mínimos que apontem para a iniciativa do então ministro da Fazenda e, menos ainda, que indiquem uma ordem dele proveniente para a consulta, emissão e entrega de extratos da conta poupança de Francenildo dos Santos Costa (...). Há apenas ilações que não estão suficientemente concatenadas para se constituir em elementos de prova. (...). Não há qualquer elemento que indique que o denunciado solicitou, sugeriu ou determinou a emissão do extrato. (...) Ser beneficiado de uma fraude não é suficiente para que alguém seja denunciado.” Ainda mais por que, disse Eros Grau, “o ministro da Fazenda não detinha poder funcional de determinar ao presidente da Caixa o acesso à conta bancária”. Ellen Gracie seguiu a mesma linha de argumentação de Ricardo Lewandowski, que declarou: “Consultando os autos, eu vejo que os indícios de autoria relativamente a dois acusados - Antonio Palocci e Marcelo Netto - são débeis, frágeis e tênues. Baseiam-se em meras presunções, especulações. Não ficou minimamente comprovado um nexo entre a conduta de Antonio Palocci e Marcelo Netto e o resultado que lhes imputa, que é a divulgação desses extratos.” Por todos os quatro ministros que votaram a favor do recebimento da denúncia, registramos a conclusão firme de Carlos Ayres Britto, a dizer que “houve unidade de desígnios, de vontades, de ações, para o cometimento de delitos. E, para mim, sob a liderança intelectual de Antonio Palocci, a quem interessava desqualificar o depoimento de Francenildo". É claro que uma decisão como essa traz sempre polêmica, inclusive sobre a conveniência de decidir-se em um ou em outro sentido. Quando o julgamento é técnico demais, acusam o direito e seus profissionais de formalismo. Quando, por outra, avança em argumentos que seriam de política, denuncia-se a politização da justiça. No caso, as críticas (ou dúvidas) se dirigem às motivações do voto de um dos ministros mais técnicos da Corte, Cezar Peluso, que, na prática, desempatou o placar. Disse o ministro: “Eu devo confessar que eu fiquei em dúvida, continuo em dúvida, e o exame dos autos não vai satisfazer tais dúvidas.” Embora tenha algumas reservas, é lição e jurisprudência consolidada, pelo próprio STF, a de que, para recebimento da denúncia, bastam indícios da autoria e prova da materialidade do crime, de modo que, na dúvida, deve ser iniciado o processo penal (princípio do in dubio pro societate). Deixa-se para, no seu curso, haver melhor esclarecimento dos fatos para formação do juízo de culpa ou absolvição dos réus. Ainda mais preocupante foi o que saiu no Painel da Folha de S. Paulo, do dia seguinte ao julgamento: “Mais do que a convicção sobre a inexistência de indícios contra Antonio Palocci, o que determinou o placar de ontem no Supremo Tribunal Federal foram fatores institucionais. Vice-presidente da Corte, Carlos Peluso elogiou a denúncia do Ministério Público e o inquérito da Polícia Federal, reconheceu que houve delito, mas, na última hora, acompanhou o voto do presidente e relator Gilmar Mendes. O voto de Peluso definiu o resultado a favor do ex-ministro da Fazenda. No entender de quem acompanha as relações internas do STF, Peluso não quis ser responsável por cravar em Mendes derrota de tamanha envergadura.” Se foi isso, perdeu a sociedade, perdeu o direito. Perdeu-se o Tribunal. De sobra ainda ficou a idéia difusa (e obscurecida pelo debate em torno do sigilo) de que o ex-ministro pode mesmo ter tido as tais reuniões com pessoas e grupos de relações duvidosas com o Erário. O que pode ser uma tremenda injustiça. Nunca ao certo saberemos. Nesse mar de dúvida, o caseiro ou Davi, segundo os advogados dos acusados, pode ter acertado a testa do ministro, Golias. Se o deixou a cambalear, é provável que não o derrube. Nossos Davis não costumam fazer história. E são logo esquecidos. Não, todavia, pelos Golias.
Repercussões:
Na Globo.com: “Corda sempre estoura do lado mais fraco”, diz Marco Aurélio sobre Palocci. Um dos quatro magistrados que votou a favor da abertura de investigação contra o ex-ministro da Fazenda e atual deputado federal Antonio Palocci (PT-SP), o ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, lamentou nesta sexta-feira (28) o resultado do julgamento sobre o caso da quebra de sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costas. “A corda sempre estoura do lado mais fraco. Sem crítica aos colegas, cada ministro votou com a sua consciência, mas foi uma decisão muito apertada”, avaliou Mello.
N'O Globo: Reversão de expectativa (Merval Pereira). Foi uma vitória tão inesperadamente apertada no Supremo Tribunal Federal — 5 a 4 —, que as vantagens políticas do resultado não serão aproveitadas com tanta amplitude quanto estava sendo planejado pelo próprio ex-ministro Antonio Palocci e pelo presidente Lula. Liberado pelo Supremo Tribunal Federal da acusação de ter quebrado o sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa, o deputado federal Antonio Palocci volta à cena política principal com menos credibilidade do que antes de ter que abandonar o Ministério da Fazenda, e, para se transformar em um curinga para o governo, terá que batalhar muito para recuperar a imagem. (...). O ex-ministro, mesmo antes da reunião de ontem do Supremo, era considerado a melhor aposta do PT para a disputa do governo de São Paulo em 2010, dando ao partido a possibilidade de disputar o cargo com um nome próprio, evitando assim que o presidente Lula insista na extemporânea candidatura de Ciro Gomes. (...).É provável que Palocci retorne, de imediato, ao primeiro escalão do governo em uma função política, provavelmente no papel de ministro das Relações Institucionais do governo, para substituir o deputado José Múcio, que deve ir para o Tribunal de Contas da União (TCU).Mas a possibilidade de vir a ser uma alternativa viável de candidatura à Presidência, caso a da ministra Dilma Rousseff não se fortaleça, tornou-se menos provável com o resultado do julgamento do Supremo.O mais improvável, porém, é que ele venha a ser o coordenador econômico da candidata Dilma Rousseff, a não ser que ela mude sua visão do assunto.
N'O Globo: Para leitores, processo contra Palocci não deveria ter sido arquivado. Na contramão da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) , a maioria dos 1020 leitores que responderam a enquete no site do GLOBO defenderam o acolhimento da denúncia contra o deputado federal e ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci (PT-SP). Para 79% dos internautas, a Corte deveria ter aberto processo para investigar o parlamentar, acusado de mandar quebrar ilegalmente o sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa em 2006. Apenas 20% foram a favor de arquivar o caso, e 1% não quis opinar. (Especialistas aprovam arquivamento da denúncia contra Palocci).
No Estadão: Com decisão do STF, Palocci poderá disputar eleições: O deputado federal e ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci (PT-SP) está livre para disputar o governo de São Paulo ou outro cargo de relevo na eleição do próximo ano. O Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou hoje um enorme obstáculo que poderia ser colocado à candidatura de Palocci. A maioria dos ministros concluiu que o parlamentar não deve responder a uma ação penal por suspeita de participação na quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa.
Na FSP: Até tu? De ministro do STF sobre o voto de Ellen Gracie rejeitando a abertura de ação penal contra Antonio Palocci no caso do caseiro: "Logo nossa dama de ferro, sempre tão dura em questões penais?".
Na Bloomberg.com: Brazil Top Court Dismisses Charges Against Palocci. Eurasia Group said Palocci may be asked to replace Central Bank Governor Henrique Meirelles, who is considering stepping down to run for office, or run as a candidate for governor in Sao Paulo.
Na EFE. El Supremo brasileño rechaza las acusaciones contra el ex ministro Palocci. Según algunos dirigentes del PT, Palocci podría ser el abanderado presidencial de la coalición de Gobierno, si la candidatura de la ministra Dilma Rousseff, propuesta por Lula, no termina de calar en las encuestas de opinión, que hasta ahora le adjudican alrededor de un 20 por ciento de intención de voto.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Reportagens Provocantes: Suspeita de compra de votos para aprovar a re-reeleição na Colômbia

O procurador-geral da Colômbia, Alejandro Ordoñez, declarou publicamente que iniciará a investigação sobre suposto uso de recursos públicos para compra de votos dos parlamentares a favor do referendo que autoriza o atual presidente do país, Álvaro Uribe, a concorrer ao terceiro mandado.
Como se parecem as histórias, não?

Gallup: Advogados não convencem norte-americanos

Em sua pesquisa anual sobre trabalho e educação, o instituto Gallup pediu para os norte-americanos pontuarem os vinte e cinco maiores ramos de atividades profissionais e industriais. A indústria de computadores ficou no topo da lista com 62% de respostas positivas, seguida dos restaurantes, com 57%, e agro-pecuária com 56%. O destaque negativo ficou por conta dos advogados que ficaram à frente apenas do rejeitado segmento de óleo e gás (21%), das indústrias de automóveis (24%) e do setor imobiliário (24%). Com apenas 25% de aprovação, perderam para os bancos (28%) e até para o governo federal (29%), geralmente muito criticados nesse tipo de pesquisa.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Dica - Carl Schmitt. Hamlet or Hecuba: The Intrusion of the Time into the Play

Carl Schmitt é visto, geralmente, como um constitucionalista e cientista político conservador e até autoritário. Essa visão impede a muitos de conhecer a obra de um dos maiores pensadores políticos do Século XX. Aliás, não precisamos concordar com as ideias dos autores muito menos criticá-las sem antes conhecê-las diretamente. É comum se formarem opiniões de segunda ou terceira mão. A cultura do Apud é uma tragédia para a inteligência.
Pois acaba de sair em inglês pela Telos [há outra versão de 2006 pela Plutarch], e, pelas informações, existem negociações para sua tradução em português, o livro "Hamlet or Hecuba: The Intrusion of the Time into the Play" [Hamlet ou Hécuba: A Invação do Tempo na Peça], escrito por Schmitt em 1956.
A análise da tragédia de Shakespeare toma o pano-de-fundo histórico de sua criação tanto para explicá-la (para os puristas: compreendê-la), quanto para demonstrar o talento shakespeareano em captar as visões de mundo de seu tempo. Os conflitos da realeza e a figura obsessiva do vingador, segundo Schmitt, servem de elementos míticos e políticos que serão utilizados na formulação da teoria moderna de representação política. Arte, cultura e política estão mais ligadas do que pensam nossos mais sinceros constitucionalistas.
E merece conferida.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Liberação do uso de drogas

A Suprema Corte da Nação Argentina, decidindo o caso "Arriola", declarou que não se poderiam incriminar pessoas maiores de idade pelo uso de pequena quantidade de maconha em ambiente privado.
Argumentou-se que a privacidade e a liberdade protegem "todo adulto a tomar decisões sobre o estilo de vida sem a intervenção do Estado".
No caso, "a posse de droga para o próprio consumo, por si só, não oferece nenhum elemento de juízo para afirmar que os acusados realizaram algo mais que uma ação privada, é dizer, que ofenderam a moral pública ou aos direitos de terceiros".
Os juízes fizeram questão de esclarecer que não estavam legitimando o consumo indiscriminado de drogas, tampouco a sua comercialização. No caso concreto, os condenados não portavam a droga de maneira ostensiva nem revelavam a intenção de comercializá-la.
Na América Latina, adotam a mesma orientação a Colômbia e o México. No Brasil, o tema também está na pauta do Congresso Nacional.
Photo: Ganja © Partha Pal

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

A escravidão de nossos dias

A Genes on lit au devant des prisons & sur les fers des galériens ce mot Libertas. Cette application de la devise est belle & juste. En effet il n’y a que les malfaiteurs de tous états qui empêchent le Citoyen d’être libre. Dans un pays où tous ces gens-là seroient aux Galeres, on jouiroit de la plus parfaite liberté. (Jean-Jacques Rousseau. Du Contrat Social.)
O mundo lida com uma escravidão invisível. Tudo se passa como se o tráfico de escravos tivesse desaparecido do mapa-múndi, desde que a consciência moral veio a revelar que o ser humano não podia ser tratado como objeto, instrumento ou meio, senão como fim, sujeito, pessoa. Nada mais de escravo por natureza, por guerra ou sob qualquer forma, portanto, certo? Errado. Estima-se que entre 12 e 27 milhões de pessoas, principalmente mulheres e crianças, são mantidas em condição de escravo. O tráfico internacional chega a mobilizar mais de seiscentos mil seres humanos por ano. Os valores envolvidos são exponenciais. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o lucro obtido só no tráfico de pessoas ultrapassa a US$ 31,6 bilhões anuais. As diversas formas de escravidão hoje incluem a escravidão propriamente dita e a contratual (ou por dívida como no "sistema Chukri" na Índia e em Bangladesh. Embora ilegal naqueles países, a sua prática ainda é freqüente), o trabalho em prisão e em campos prisionais (trabalho penal), o sistema de escambo (truck system) em que, unilateralmente, a paga se dá por meio de mercadorias ou produtos, bem como os serviços dos conscritos (prestação de serviço militar obrigatório sem recebimento de remuneração alguma ou em baixíssimos valores). O tráfico de pessoas é, simultaneamente, redução das vítimas à condição de escravos, por meio da força ou de fraudes (falsas promessas de emprego e status), e meio de promover o instituto, mobilizando massas de gente em diversos cantos do globo. A ONU define, em seus documentos, o "trabalho forçado" e "tráfico de pessoas". O primeiro é previsto pela Convenção 29 da OIT como "todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob a ameaça de alguma punição e para o qual o dito indivíduo não se apresentou voluntariamente". Já o tráfico é identificado pelo artigo 3 do protocolo suplementar à Convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional, de 6 de outubro de 2000, como “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração.” A UNICEF calcula que duzentas mil crianças da África, principalmente em Benin e no Togo, são vendidas como escravas a cada ano. E os destinos não são necessariamente transatlânticos. Muitas delas são levadas para trabalhar em serviços domésticos, nas lavouras e na indústria do sexo no Gabão e Nigéria. De acordo com o Departamento de Estado norte-americano, mais de noventa mil negros são capturados na África subsaariana, especialmente nas tribos animistas do sudeste do Sudão, por milícias árabes dos países do norte do continente, e vendidos entre US$ 15 e 100 por cabeça. A invasão se faz como nos mais terríveis e clichês filmes do gênero: com assalto às vilas e ateamento de fogo às casas, chacina dos homens e captura das mulheres e crianças. Os donos dos escravos os mantêm sob forte vigilância, quase sempre os submetendo a chantagens. Não raro, mutilam fisicamente seus "bens humanos" como se fosse uma espécie de ferro a identificar o proprietário. A comunidade internacional tem procurado enfrentar o drama. Além de Convenções regionais e no âmbito da ONU, diversas agências governamentais e não governamentais foram instituídas para denunciar e combater essa prática injuriante ao que se autoproclama civilizado. A Organização Internacional para Migração (IOM), sediada em Atenas, Bruxelas, Paris, Roma e Viena, tenta impedir o tráfico de seres humanos, assim como o Comitê contra a Escravidão Moderna (CCEM), que, como o nome indica, luta contra todas formas de escravidão moderna. A Associação sobre Estrada, é membro do Comitê para Coordenação das Ações Governamentais contra a Exploração Sexual de Mulheres e Crianças da União Européia. No plano interno, destacam-se, na Bélgica, o Pag-Asa e o Payoke, o Servizio Migranti Caritas, baseado em Turim, com ênfase ao combate ao tráfico de pessoas e ao trabalho forçado, especialmente o sexual. No Brasil, há diversos registros de trabalho escravo e exploração sexual de mulheres e jovens. Estima-se que existam entre 25 e 50 mil pessoas vivendo em regime de escravidão no país. A grande maioria é formada por trabalhadores oriundos de Estados do Nordeste, notadamente da Bahia, do Piauí, Rio Grande do Norte e do Maranhão, que são aliciados pelos chamados "gatos" para trabalharem em grandes fazendas de gado, de soja, algodão e cana-de-açúcar no Norte, no Mato Grosso e mesmo no Sudeste. Os trabalhadores, removidos de suas localidades, acabam por contrair dívidas vultosas, impostas pelo patrão e pelos intermediários. Além de viverem em condições precárias e não receberem salários, retidos como forma de pagamento, são impedidos de deixar o lugar de trabalho. A situação de penúria associada ao baixo índice de formação dos afetados leva a um quadro sociológico peculiar em que a pessoa explorada ou reduzida à condição de escravo, como diz Souza Martins, sequer tem consciência de seu quadro, não detendo, por consequência, a capacidade de indignar-se. De acordo com os levantamentos feitos pela Secretaria de Inspeção do Trabalho, entre 1995 a julho de 2006, 19.924 trabalhadores foram libertados no Brasil. Nesse período, foram realizadas 451 operações, com 1.567 fazendas fiscalizadas e mais de R$ 25 milhões pagos em indenizações. Quem acha que o fenômeno se restringe ao campo se engana. Na capital paulista, foram registrados casos em que estrangeiros, sobretudo bolivianos ilegais no país, trabalhavam em fábricas confecções em ambientes insalubres e clandestinos, sem outro direito trabalhista que não fosse o recebimento de minguados salários. Em relação ao tráfico de pessoas, o último estudo realizado sobre o tema data de 2002. Cuidou-se da Pesquisa sobre o Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual (Pestraf), que delineou 241 rotas de tráfico, sendo 131 internacionais, 78 interestaduais e 32 intermunicipais, de crianças, adolescentes e mulheres brasileiras. Os dados reunidos pela pesquisa serviram como orientação inicial para os trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), instalada no Congresso Nacional entre 2003 e 2004, com o intuito de investigar a prática da exploração sexual comercial no país. O maior número de rotas foi encontrado no Norte e Nordeste, mas também são alarmantes os registros delas no Sudeste, no Centro-Oeste e no Sul. Catalogaram-se 86 inquéritos e 68 processos penais sobre o crime previsto no art. 231 do Código Penal (Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual). O problema exige o comprometimento do Estado e da sociedade com ações efetivas de combate a tais desatinos. Uma iniciativa do gênero foi adotada com o “Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo”, lançado em 11 de março de 2003, que reúne órgãos do Executivo, o Legislativo, o Judiciário e o Ministério Público, além de entidades da sociedade civil e organismos internacionais. No plano legislativo, há projetos de lei em tramitação que visam tanto ao agravamento de penas ou criação de novos tipos penais, quanto previsão de sanções cíveis mais severas. Destacam-se, no âmbito criminal, os projetos que incluem como tipo precedente para a "lavagem de dinheiro" ou ocultação de bens, direitos e valores, o tráfico de pessoas (PL-4334/2004; PLS 117/2002; PLS 15/2006; PLS 15/2006); que definem o tráfico de pessoas e crianças para fins de prostituição, trabalhos forçados, trabalho escravo, remoção e comercialização de órgão humano como figuras penais (PL-2375/2003), bem como os que enquadram como crime hediondo a mediação para servir a lascívia de outrem, o favorecimento da prostituição, rufianismo e o tráfico de pessoas; altera o termo "tráfico de mulheres" para tráfico de pessoas, com o objetivo de incluir os crimes praticados contra menino e menina (PL-2338/2000 ). No campo cível, merecem nota, entre outras, as proposições que proíbem a concessão de crédito e a contração por licitação a pessoas físicas ou jurídicas que tenham incorrido em ato que configure a submissão de alguém à condição degradante de trabalho ou que importe grave restrição à sua liberdade (PL-3500/2004; PLS n. 207/2006); a que institui o Cadastro de Empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo (PLS 25/2005) e a que inclui as propriedades onde se identifiquem faltas da espécie no programa de reforma agrária (PLS 352/1999). Quem dera essa história de escravos em tempos atuais fosse apenas roteiro de filme grotesco ou metáforas de mau gosto a refletir, por exemplo, a submissão de um ao amor condicional do outro. Não é, infelizmente.

domingo, 23 de agosto de 2009

A ética e as utopias

Muita gente já chamou o século XX, o século das utopias negativas. Fascismo, Comunismo e Nazismo não passaram de um sonho de uma sociedade ideal que acabaram em regimes totalitários, provocando dor e extermínio.
Em 1606, com 42 anos de idade, Shakespeare não precisava escrever mais nada, ele já tinha nos dado Hamlet, Rei Lear, Othelo, Macbeth e mais 26 peças teatrais. Cansado do mundo, resolveu criar um, onde sua imaginação poderia correr livre e sem peias. Escreve quatro peças, intituladas de Romances: Péricles, Conto de Inverno, Cimbelino e A Tempestade.
A que nos interessa aqui é a insólita A Tempestade, o mundo de Próspero, Duque de Milão banido do trono. Shakespeare com certeza leu A Utopia, de Thomas Morus, livro que serviu como fonte de inspiração para muitos proponentes de uma sociedade ideal. Séculos depois, Aldous Huxley escreveu sua utopia, Admirável Mundo Novo.
Esse título é uma frase de Miranda, a filha de Próspero. Bem, Próspero vive numa ilha onde controla tudo com seus poderes mágicos. Os habitantes são: ele mesmo, sua filha, o gênio alado Ariel e o bronco Caliban, servos que tudo fazem pra ele. Próspero é todo poderoso e nada foge a seu controle.
Lá todos os seus desejos são realizados. Já velho e precisando voltar pra casa, Próspero resolve trazer seus amigos e inimigos ao encontro dele. Daí, casa sua filha com um príncipe, liberta seus servos, faz as pazes com seus adversários, pune quem deve punir, enfim faz tudo que deseja fazer. Karl Marx adorava A Tempestade e tirou de lá a célebre frase: “tudo que é sólido se desmancha no ar”.
Cito A Tempestade por ser uma peça que trata de um reino utópico. Utopia é uma palavra bela e perigosa que está voltando à moda. Está surgindo como reação à brutal crise moral e ética por que passa o país nesse momento. Que não há justiça no Brasil, já sabemos! Ela alcança apenas os cidadãos desprovidos de poder político e econômico.
Uma perversa elite de menos de 0,1% da sociedade vive acima da lei, sem sofrer qualquer tipo de punição. A única pena é a conta do advogado. Portanto, dessa instituição, poder judiciário, não podemos esperar nada.
O nível de desmoralização que chegou o Senado do Brasil não tem paralelo em nenhum outro lugar do mundo civilizado. E pior, com a contribuição de Lula, o Presidente da República que, em nome da governabilidade não diz uma palavra de reprovação a essa gente, pelo contrário, as apóia.
O comportamento de alguém que se dizia portador de uma utopia está mergulhando o país num mar de imoralidade e frouxidão ética. Eis o perigo das chamadas utopias e seus utopistas, em sua maioria, puristas ou demagogos. Precisamos ter os pés no chão. Noções etéreas levam ao desconhecido.
Lembremo-nos da transformação das utopias em formas de governo a partir da segunda década do século XX e o horror que se seguiu dali. A reação à imoralidade deve apresentar outro estofo, não esse! Utopias, apenas em nossa imaginação, na arte ou na vida privada. Quem pretende implantar utopias que vá para a ilha de Próspero, saia do mundo, crie uma só pra si!
Postado por Theófilo Silva, Presidente da Sociedade Shakespeare de Brasília e colaborador da Rádio do Moreno.

sábado, 22 de agosto de 2009

Reportagens provocantes: Taleban corta os dedos de eleitores

KABUL, Afghanistan (CNN) -- "Cumprindo a ameaça de violência no dia da eleição presidencial [no Afeganistão], o Taleban cortou o dedo indicador de pelos menos duas pessoas na província de Kandahar.
Depois de depositarem seus votos, os eleitores afegãos têm seus dedos marcados com tinta para evitar que votem novamente. Os dedos de duas mulheres em Kandahar, com presença forte do Taleban, foram cortados depois de terem votado, disse Nader Naderi da Fundação por uma Eleição Livre e Justa (Free and Fair Election Foundation).
Ataques esporádicos no dia da eleição mataram 26 pessoas e provocaram ferimentos em um número ainda maior. Mesmo assim, o governo afegão disse que a votação foi um sucesso".
Responda rápido: A democracia é um valor universal? A comunidade internacional deve intervir para garantir sua realização e prevenir que a violência, com tintas de barbárie, acontença contra os que desejam participar do processo eleitoral?

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Reportagens insinuantes: EM - PT Sangra para Salvar Sarney

Estado de Minas, 20/8/2009, Política, p. 3: "Constrangida, bancada petista faz jogo do Planalto e aprova arquivamento de denúncias contra o presidente do Senado".
O Estado de S. Paulo, 20/8/2009 Acordão enterra caso Sarney e abre crise no PT Inconformado com orientação do partido, Flávio Arns anuncia desfiliação e demais petistas criticam líder. Eugênia Lopes e Christiane Samarco
Com os votos dos três representantes do PT, o Conselho de Ética absolveu ontem o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), e o líder dos tucanos, o senador Arthur Virgílio (AM). O arquivamento de todas as denúncias e representações, que fazia parte do "acordão" selado na semana passada entre líderes governistas e a oposição, abriu uma crise sem precedentes na bancada petista. Flávio Arns (PT-SC) avisou que vai deixar o partido. Horas antes, a senadora Marina Silva (AC) também anunciou que estava saindo do PT (veja na página A14)."O PT jogou a ética no lixo e vai ter de achar outra bandeira. O partido deu as costas para a sociedade e para o povo", disse Arns ao anunciar que deixará o partido. A posição petista, totalmente submissa à orientação do Planalto, que mandou votar a favor de Sarney para preservar a aliança com o PMDB para 2010, foi o destaque da sessão do conselho.Sob vigilância do líder peemedebista, Renan Calheiros (AL), o líder do PT, Aloizio Mercadante (SP), não conseguiu pôr em prática a proposta de reabrir pelo menos uma denúncia contra Sarney - falava em manter a investigação da denúncia sobre o namorado de uma neta de Sarney que foi nomeado para trabalhar no Senado por ato secreto. Renan havia dito ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva que não aceitaria "esse jogo de cena para a plateia" e queria os três votos do PT no apoio ao presidente do Senado. O arquivamento das seis denúncias e cinco representações contra Sarney, por quebra de decoro, ocorreu 70 dias depois de o Estado revelar, no dia 10 de junho, a existência de atos secretos que beneficiaram seus parentes e apadrinhados, além das reportagens sobre a casa de R$ 4 milhões não declarada à Justiça Eleitoral e o desvio de dinheiro público na Fundação Sarney."A dureza do processo político consolida parcerias e alianças. Está ficando clara a necessidade de estarmos juntos na defesa da governabilidade", disse Renan. Mesmo não integrando formalmente o conselho, ele participou de toda a reunião. Pronunciou-se uma única vez, para avisar que o PMDB se sentia "suficientemente esclarecido" com as explicações de Virgílio e votaria pelo arquivamento das denúncias contra ele. Duas horas antes do início da reunião do conselho, o presidente do PT, deputado Ricardo Berzoini (SP), divulgou nota orientando a bancada a votar pelo arquivamento das representações contra Sarney. A nota veio na sequência da reunião, terça-feira à noite, com o deputado Michel Temer (PMDB-SP), os senadores Sarney, Romero Jucá (PMDB-RR) e Lobão Filho (DEM-MA), além da anfitriã, a governadora do Maranhão, Roseana Sarney, e o ministro Edison Lobão (Minas e Energia). Na reunião, eles receberam a garantia dos três votos do PT (João Pedro/AM, Delcídio Amaral/MS e Ideli Salvatti/SC) e concluíram que Sarney não corria mais nenhum risco.Para engavetar os processos, Berzoini alegou que a oposição alimentou a crise política no Senado de olho em 2010, fez uma "manipulação hipócrita dos interesses eleitorais" e investiu no fim da aliança entre PMDB e PT. A nota justificando a posição dos petistas foi lida por João Pedro.Diante da evidência do "acordão", o senador Pedro Simon (PMDB-RS), foi ao ataque. "Hoje é o dia que o PT abraça o Sarney e o Collor e a Marina sai do partido", definiu. O ex-presidente e senador Fernando Collor (PTB-AL) faz parte da tropa de choque pró-Sarney.As votações no conselho duraram cerca de uma hora. Os governistas aprovaram requerimento para que as seis denúncias e as cinco representações contra Sarney fossem votadas em dois blocos, sem necessidade de derrubar uma a uma.
Para salvar tucano, oposição resolve não recorrer da decisão Movimento essencial no script do acordão, a oposição não deverá recorrer ao plenário do Senado da decisão do Conselho de Ética que resolveu engavetar ontem 11 ações por falta de decoro parlamentar contra o presidente da Casa, José Sarney (PMDB-AP), e uma representação contra o líder do PSDB, senador Arthur Virgílio Neto (AM). A decisão da oposição é fruto de um acordo informal com os governistas, o qual permitiu que o tucano fosse absolvido por unanimidade no Conselho de Ética. Foram 15 votos pelo arquivamento da representação contra Arthur Virgílio, acusado de pegar emprestado dinheiro do ex-diretor geral do Senado Agaciel Maia e de pagar salário durante mais de um ano um funcionário de seu gabinete que morava no exterior. Derrotado, Mercadante é tachado de ingênuo Mesmo sentado na cadeira de líder do PT, o senador Aloizio Mercadante (SP) deixou o Conselho de Ética do Senado ontem ostentando o título de grande derrotado na operação política que livrou o presidente da Casa, José Sarney (PMDB-AP), de um processo de cassação. Além da acusação de negar solidariedade aos petistas forçados a absolver Sarney no conselho, Mercadante sai do episódio com uma baixa em sua própria bancada - a do senador Flávio Arns (PR), no mesmo dia em que perdeu Marina Silva (AC). O senador entrou em confronto com a direção nacional do PT, ficou sem condições de diálogo com a cúpula do PMDB no Senado e deixou irados o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a candidata petista à sua sucessão, ministra Dilma Rousseff."

domingo, 16 de agosto de 2009

Reportagens provocantes: Lei permite privação de comida a mulher por falta de sexo no Afeganistão

A condição da mulher em alguns países islãmicos é degradante. Elas ou não possuem direitos políticos ou, quando os detêm, são ameaçadas fisicamente para não exercê-los. Uma lei, em vigor no Afeganistão desde o dia 27 de julho, submete o corpo e a vontade da mulher xiita ao querer sexual do homem. Leia a reportagem da BBC Brasil, reproduzida pela Folha online de hoje:
"Uma nova lei afegã vem provocando polêmica ao permitir aos homens xiitas negar comida às suas mulheres se elas se recusarem a manter relações sexuais com eles. A lei, que também estabelece que as mulheres casadas precisam da permissão dos maridos para trabalhar e dá aos homens e aos avôs a custódia exclusiva dos filhos, foi promulgada e publicada apesar dos protestos da comunidade internacional. O presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, já havia sido obrigado anteriormente a vetar uma versão original da lei após a pressão de organizações internacionais. Mas os críticos dizem que a nova versão da lei é igualmente repressiva e acusam Karzai de ter cedido em troca do apoio dos xiitas conservadores nas eleições presidenciais desta semana. A nova lei, aplicada apenas para a minoria xiita, estabelece normas para a vida familiar. A versão original da lei obrigava as mulheres xiitas a manter relações sexuais com seus maridos no mínimo a cada quatro dias e, na prática, aceitava o estupro ao remover a necessidade de consentimento para o sexo dentro do casamento. Líderes ocidentais e grupos de defesa dos direitos das mulheres afegãs se uniram para condenar a aparente reversão de direitos conquistados pelas mulheres do país após a queda do regime radical islâmico do Talebã, derrubado em 2001. Agora a versão atualizada da mesma lei foi aprovada sem estardalhaço e transformada em lei com a aparente aprovação de Karzai. "Houve um processo de revisão e Karzai sofreu pressão de todas as partes do mundo para mudar essa lei, mas muitas das normas repressivas permanecem", disse Rachel Reid, representante em Cabul da organização internacional Human Rights Watch. "O que importa mais para Karzai é o apoio dos fundamentalistas e dos linha-dura aqui no Afeganistão, de cujo apoio ele acha que precisa para as eleições", diz. Grupos de defesa dos direitos das mulheres afirmam que a formulação da nova lei viola o princípio de igualdade que está garantido pela Constituição afegã."

Filme: Kurt Cobain - Retrato de uma Ausência

KURT COBAIN não tinha, digamos, a voz muito bonita, embora soasse com se a alma ou o estômago tivessem cordas; nem era exatamente um exemplo de vida, mas era um poeta urbano, deprimido (pleonasmo) e até melodramático. Sai agora "Kurt Cobain - Retrato de uma Ausência" (Kurt Cobain, about a son), de A. J. Schnack. O filme resume mais de 25 horas de conversas do vocalista do Nirvana com Michael Azerrad, transformadas no livro "Come as you are: the history of Nirvana". Não é exatamente um grande filme, tampouco um documentário como outro qualquer. Nele, são vistas apenas imagens de avenidas, estradas, parques, prédios e pessoas, na quase totalidade, anônimas, "normais", secundadas pela voz do fantasma de Kurt a contar a sua história. Mesmo não tendo uma apresentaçãozinha sequer da banda (faltou dinheiro para bancar os direitos autorais), vale a pena conferir as origens e o contexto de um astro, criador ou inspirador do grunge e da geração X, ofuscado pelas luzes e tão inseguro que não suportou a própria vida. Há um trecho emblemático em que Kurt fala da educação que recebeu de seu pai e diz: "Fui condicionado a não cometer erros (...). Eu fingia ser o super-homem. Era o máximo do divertimento possível." Haverá, com certeza, identificações. E muitas, sobre o que fomos ou estamos tentando ser ou fazer outros serem. É por isso que emociona e, poucas vezes, faz rir.
Ouça e veja:

sábado, 15 de agosto de 2009

Pensamentos obtusos: A morte segundo Twain

"A vida não foi um presente valioso, mas a morte foi. A vida era um sonho febril, composto de alegrias embebidas em tristezas, de prazer envenenado pela dor. Um sonho que era uma pesadelo - confusão de espasmódicos e evanescentes encantos, êxtases, exultações, felicidades, intercalados por profundas misérias, mágoas, perigos, horrores, decepções, derrotas, humilhações e desesperos -- a mais pesada maldição projetável pela divina ingenuidade. A morte, entretanto, foi doce, a morte foi suave, a morte foi bondosa. A morte curou o espírito machucado e o coração ferido, e deu-os o repouso e o esquecimento. A morte foi o melhor amigo do homem, pois quando ele não pode mais suportar vida, a morte veio e o deu a liberdade: Life was not a valuable gift, but death was. Life was a fever-dream made up of joys embittered by sorrows, pleasure poisoned by pain; a dream that was a nightmare-confusion of spasmodic and fleeting delights, ecstasies, exultations, happinesses, interspersed with long-drawn miseries, griefs, perils, horrors, disappointments, defeats,humiliations, and despairs--the heaviest curse devisable by divine ingenuity; but death was sweet, death was gentle, death was kind; death healed the bruised spirit and the broken heart, and gave them rest and forgetfulness; death was man's best friend; when man could endure life no longer, death came and set him free". Letter X. In. Letters from the Earth. Harper & Row, 1974[1909].

Reportagens insinuantes: FSP - Representante de Offshore abasteceu Fundação Sarney

Há notícias que chamam a nossa atenção e devem ser registradas, no mínimo, para virarem história no futuro. É certo que a mídia aqui e acolá desanda a fazer insinuações sem muita responsabilidade com os fatos, pondo na beira da lama ou do limbo nome de pessoas inocentes.
Entretanto, certas reportagens são, digamos, provocantes. Despertam uma revolta inconsciente, uma espécie de prejulgamento contra os retratados e contra as garantias do contraditório. Debite-se à conta da espoliação secular do país. E a esse cheiro danado de pizza no ar.
Uma delas apareceu na FSP de 15/8/2009. dando conta de que a KKW do Brasil, que pertence ao ex-senador Gilberto Miranda, ligado a José Sarney, não teria site nem negócios visíveis, mas declarara capital de R$ 80 mi. Em nota de destaque, afirma:
"PERFIL: EX-SENADOR TEVE NOME LIGADO A ESCÂNDALOS DURANTE GOVERNO FHC Gilberto Miranda foi acusado de comprar e divulgar o dossiê Cayman, papéis sem autenticidade comprovada que apontavam tucanos como donos de empresa nas Bahamas. No caso Sivam, foi citado como possível beneficiário de propina, o que não foi comprovado. Em 2007, atuou para evitar a cassação de Renan. Neste ano, empenhou-se na eleição de Sarney. Chegou a Brasília em 1967. Foi professor de natação de Collor. Hoje, tem patrimônio estimado em R$ 1 bilhão."
Tome nota.
Íntegra da reportagem: Folha de São Paulo

Marina e o Rei Lear

A cena final de maior impacto do teatro mundial é a do velho Rei Lear entrando no palco com Cordélia morta nos braços. Samuel Johnson, o maior ensaísta em língua inglesa, não perdoava Shakespeare por essa morte. Shakespeare matava seus personagens para que eles vivessem eternamente na mente de todos nós!
Em artigo na Folha intitulado Complexo de Lear, a senadora e ex-ministra do meio ambiente Marina Silva comparou-se a Cordélia, personagem da peça Rei Lear, a tragédia mais complexa de Shakespeare. O enredo parece simples. Não é.
Já octogenário, o Rei Lear, da Bretanha, pretendendo descansar, resolve dividir o reino entre as três filhas, em partes iguais. Na hora de fazê-lo, e na presença de todos, pede a cada uma que lhe faça uma declaração de amor. As mais velhas, Goneril e Rejane, se derramam em elogios ao velho rei.
Enquanto isso, Cordélia a mais jovem, mantém-se calada repetindo pra si mesma: “Ah! Que fará Cordélia? Amar e calar”. E é isso que ela faz mesmo! Nada consegue dizer! O velho Lear, irritado com a negativa, diz para ela que: “do nada não vem nada”! Pede a ela que corrija suas palavras! Cordélia se recusa e nada faz.
Pronto, a tragédia se desenha! Lear deserda Cordélia e a amaldiçoa! O rei da França se impressiona com ela e a escolhe como esposa. Daí pra frente Lear sofre o desprezo e o abandono de Goneril e Rejane e enlouquece. Sabendo do sofrimento do pai, Cordélia volta da França, faz as pazes com ele e o acolhe.
Mas aí as brigas pelo poder já estão instaladas, começa uma guerra e Cordélia é presa e assassinada a mando do amante de suas irmãs! Lear, que deveria ser morto junto com ela, mata a golpes de espada o assassino de Cordélia e morre desesperado de dor agarrado ao corpo inerte da filha. Essa é a história.
Marina Silva se declara rejeitada por Lula, seu pai político e protetor, e o acusa de “complexo de Lear” ameaçando abandoná-lo, segundo ela diz em seu artigo, por ele “se recusar a ser o que foi um dia”. Ela deve ter suas razões pra agir assim! Sabemos que quem dá início à tragédia é Lear, mas quem a precipita é Cordélia, que poderia evitá-la com um simples toque, era só corrigir sua declaração.
Ela ama o pai! Sabe que suas irmãs são ambiciosas e perversas. Poderia ter evitado a desgraça. Mas não o fez! Por quê? Cordélia diz: “o que pretendo fazer executo antes de dizer”. Marina se sente uma filha rejeitada, só que Shakespeare nos ensina que em questões de Estado, embora a paixão prevaleça algumas vezes, o governante não pode se dobrar a ela.
Seu dever é proteger os cidadãos e procurar o melhor para eles, não havendo espaço em seu coração para escolhas que não sejam a seus olhos o melhor para seu povo. Falta a Marina essa compreensão. Lula pode até amá-la, mas não pode subordinar questões de Estado a esse amor!
Quando Cordélia se recusou a declarar seu amor pelo pai, o contrário do que faz Marina, ela ajudou a destruir a ordem do reino. Marina pode se queixar de rejeição, mas sua declaração de amor é confusa.
E é o futuro marido de Cordélia, o rei da França, que afirma: “Amor não é amor quando a ele se misturam preocupações estranhas ao seu puro objetivo”. É isso que nos parece!
Postado por Theófilo Silva, presidente da Sociedade Shakespeare de Brasília e colaborador da Rádio do Moreno.

O direito a uma morte doce.

A eutanásia ou, etimologicamente, "boa", "suave", "doce" ou "digna morte", continua a dividir opiniões. Para alguns, é uma aberração às leis de Deus e da natureza, um atentado à moralidade, uma disposição de um bem indisponível e sagrado. Para outros, é a realização da autonomia e dignidade humanas. Ninguém é obrigado a continuar a viver se conscientemente deseja morrer ou, no caso de inconsciência, se o diagnóstico médico é de irreversibilidade e os parentes decidirem abreviar a dor. Em muitos casos, é exigência humanitária em vista do sofrimento extremo.
As situações definidas como eutanásia são distintas e envolvem uma sistema de classificação, desenvolvido desde o seminal estudo de Franz Neukamp, que toma a ação do agente ou a vontade do paciente como critérios. De acordo com a ação, podemos falar em "eutanásia ativa", se há a intenção do agente de provocar a morte para fins misericordiosos e sem sofrimento do paciente.
A "eutanásia passiva" ou "indireta" é a que se verifica quando deliberadamente não se inicia um tratamento ou se interrompe o que esteja em andamento diante de um quadro terminal e sempre com o objetivo de minorar a dor. Há ainda a "eutanásia de duplo efeito" com a aceleração da morte em decorrência indireta das intervenções médicas executadas com o intuito de reduzir o sofrimento de um doente terminal.
Em relação ao querer do paciente, diz-se "eutanásia voluntária" quando há livre manifestação nesse sentido. Se a ação se der contra a sua vontade expressa, diz-se "eutanásia involuntária", para diferenciar dos casos de "eutanásia não voluntária", quando não há registros dessa vontade em um ou noutro sentido. A combinarmos os critérios, poderemos ter uma eutanásia ativa e voluntária ou outra passiva voluntária ou involuntária.
Em geral, essas duas últimas espécies são denominadas de "suicídio assistido". Há uma tendência a se admitir a assistência à morte, mas não a intervenção ativa dos médicos, embora, para muita gente, a distinção não tenha moralmente relevo. A Holanda, a propósito, é um dos poucos países onde não há uma distinção legal entre as duas modalidades de abreviação da morte.
Com registros na Antiguidade (os estóicos, por exemplo, diziam que era decorrência da liberdade do homem a sua escolha entre a vida e a morte), a prática só foi legalizada com o "homicídio piedoso", previsto pelo art. 37 do Código Penal do Uruguai em 1934, e, tempos depois, pela Lei dos Direitos dos Pacientes Terminais dos Territórios do Norte da Austrália e pela Lei do suicídio assistido do Estado norte-americano do Oregon (The Death with Dignity Act), já em 1995 e 1997, respectivamente. Uma lei do gênero, intitulada "Death with Dignity Act"[Lei sobre Morte com Dignidade], foi aprovada no Estado de Washington em 4 de novembro de 2008, por meio de referendo popular.
Seus dois maiores reveses se deram em 1987, quando a Associação Mundial de Medicina aprovou a Declaração de Madrid, contrária à prática. E, em 1980, com a Declaração do Vaticano sobre Eutanásia, embora haja neste último caso apoio à interrupção de tratamento considerado inútil, ainda que venha a causar a morte do paciente:
"Na iminência de uma morte inevitável, apesar dos meios usados, é lícito em consciência tomar a decisão de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes. Por isso, o médico não tem motivos para se angustiar, como se não tivesse prestado assistência a uma pessoa em perigo" .
Nos Territórios do Norte da Austrália, a Lei dos Direitos dos Pacientes Terminais, que autorizava a eutanásia ativa, foi revogada pelo Parlamento federal em março de 1997 contra um sólido apoio da opinião pública: 74% dos australianos eram favoráveis a ela. Mesmo em seu curto tempo de vida, a lei possibilitou a Robert Dent e outros três pacientes receberem autorização para suspender o tratamento médico que os mantinha vivo.
Na Holanda, a prática era tolerada, mas somente foi legalizada em 1o. de Abril de 2002. Também na Suíça, em Luxemburgo, na Bélgica e na Tailândia, ela é permitida, embora os registros, não oficiais, obviamente, de sua ocorrência em unidades de terapia intensiva sejam quase uma constante nos países ocidentais e mesmo orientais. Mais recentemente, outro Estado da Austrália voltou a validar o procedimento médico pouco depois do que, em parte, fizera a Grã-Bretanha.
Na Terra da Rainha, a história remonta à primeira metade do século XX com a iniciativa do Dr. Millar de legalização da eutanásia voluntária, que foi discutida por cinco anos até ser rejeitada pela Câmara dos Lordes em 1936. Desde então a eutanásia e o suicídio assistidos passaram a ser considerados crimes.
Mas foram os próprios Lordes que, na última sessão antes de suas funções como tribunal de apelação (Law Lords) serem transferidas para uma Suprema Corte, em vista da reforma constitucional de 2005, atenderam a um pedido de Debbie Purdy, portadora de esclerose múltipla em fase terminal, para que seu marido não seja acusado de auxiliar um suicida no caso de levá-la à Suíça para submeter-se ao procedimento médico.
Mais que atender à demanda, os Law Lords reconheceram que o tema é lacunoso na legislação britânica, o que pode significar um reexame do assunto. Na verdade, não havia registros de condenações ou mesmo de ações movidas contra as pessoas que transportavam os doentes terminais para a Suíça, algo, até certo ponto, recorrente na Grã-Bretanha. Segundo Debbie, a decisão lhe trouxe a vida de volta:

Pois bem, na esteira desse precedente britânico, a Suprema Corte do Estado da Austrália Ocidental decidiu, em 14/8/2009, que os responsáveis pelo asilo, onde Christian Rossiter vive, poderão parar de alimentá-lo, não sendo, por isso, acusados de homicídio ou de auxílio ao suicídio. De acordo com a legislação em vigor, os pacientes podem recusar um tratamento que seja indispensável à vida, mas quem ajudar de algum modo o suicida a consumar o ato responde por crime punido com pena privativa de liberdade.

O presidente da Corte considerou que o caso não era propriamente de eutanásia: "Nem é sobre tratamentos médicos letais prescritos a pacientes que desejam morrer. Nem é sobre o direito de viver ou mesmo o direito de morrer. Nem foi chamada a corte para determinar o melhor curso da ação [médica] em função dos interesses do paciente. A única questão que se apresenta para decisão neste caso concerne à obrigação legal, sob o direito da Austrália Ocidental, de um provedor de serviços médicos, que assumiu a responsabilidade de cuidar de um paciente mentalmente capaz, diante da afirmação clara e inequívoca deste paciente de não querer mais receber os serviços médicos que, se interrompidos, causarão a ele inevitavelmente o óbito."

Rossiter é tetraplégico e havia feito o pedido de abreviação da morte por não poder realizar as "funções humanas mais elementares". Não pode, por exemplo, enxugar as lágrimas do próprio rosto, choradas pelo desespero de sua condição e pela dor de não mover a realidade um ínfimo centímetro na direção de seus sonhos e necessidades. Sua mente é tão lúcida e brilhante que o fundador da Exit International, organização de defesa da eutanásia voluntária, chegou a dizer: "Eu não sei se muitas pessoas desejarão morrer se estiverem nessas condições. Mas, para as pessoas que o quiserem, é uma decisão muito importante [a ser respeitada]".

Além de andar numa cadeira de rodas e respirar por meio de um tubo traqueostômico, são os enfermeiros quem o alimenta e hidrata por meio de outro tubo ligado ao estômago. Em entrevistas que concedeu à imprensa local, disse-se um alpinista e aventureiro aprisionado num corpo inútil, a morte não o amedronta, só o desespero e a dor que ora sente.

A Corte, embora não falasse expressamente na proteção à "morte digna", fez menção ao direito que tem o cidadão australiano a recusar conscientemente um tratamento médico, ainda que indispensável à sobrevivência, bem como o respeito à autonomia ou autodeterminação, inclusive nos domínios da própria vida.

O último desejo de Christian é, agora, receber analgésicos e ver televisão em paz antes do dormir: "I'm happy that I won my right to die" [Estou feliz por ter conseguido meu direito de morrer].

Pensamentos obtusos: O amor segundo Mann

Amor como crueldade: "A crueldade é um dos principais ingredientes de amor, dividindo-se igualmente entre os sexos: crueldade da cobiça, da ingratidão, da insensibilidade, dos maus tratos, da dominação. Sucede o mesmo com as qualidades passivas como paciência com o sofrimento e até com o prazer no abandono." The Beloved Returns Lotte in Weimar. Trad. H.T. Lowe-Porter. New York: A. Knopf, 1950, cap. 7
Amor carnal como pedagogia: "O corpo e o amor ao corpo são indecentes e desagradáveis. A superfície do corpo enrubece e se torna pálida, porque tem medo e vergonha de si mesma. Mas ao mesmo tempo é uma grande e divina glória, uma milagrosa imagem da vida orgânica, um milagre sagrado da forma e da beleza, e o amor devotado a ele, ao corpo humano, é, por assim dizer, um interesse extremamente humanitário e um poder mais educativo do que toda pedagogia do mundo!" The Magic Mountain. Trad. John E. Woods.New York: A. Knopf, 1995, p. 407

Pensamentos obtusos: A tolerância segundo Mann

"A tolerância se transforma num crime quando aplicada ao mal". The Magic Mountain. Trad. John E. Woods.New York: A. Knopf, p. 611.
Mann falava pela voz de Hans Castorp. O mal era a religião ou as metafísicas que "nos conduzem ao sono profundo, sugando as energias que poderiam ser usadas para construção do templo da sociedade".

Peter Singer e a sacralidade da vida

Peter Singer é um expoente da chamada, por alguns, "bioética utilitarista". Sua precursora tese dos direitos dos animais se seguiu à defesa do direito da mulher a interromper a gravidez e da eutanásia. No breve texto "The Sanctity of Life", publicado originariamente na Foreign Policy, de setembro/outubro de 2005, por ocasião do debate em torno do desligamento dos aparelhos de Terri Schiavo, ele apresenta a sua leitura sobre esses dois últimos assuntos, abortamento e eutanásia. Destaquei dois parágrafos importantes do texto:
"Durante os próximos 35 anos, a visão tradicional da sacralidade da vida humana irá desabar sob a pressão do desenvolvimento científico, tecnológico e demográfico. Em torno de 2040, pode ser que apenas um grupo em extinção de radicais (rump of hard-core) e os desinformados fundamentalistas religiosos continuarão a defender a tese de que toda vida humana, desde a concepção até a morte, é sacrossanta". (...).
"Quando a ética tradicional da sacralidade da vida humana mostrar-se indefensável nos dois instantes da vida, no seu início e no seu fim, uma nova ética irá substituí-la. Ela reconhecerá que o conceito de pessoa é distinto do de membro da espécie Homo sapiens, e que é a personalidade, não [a qualidade de] membro da espécie, que é mais significante para determinar quando é errado por fim à vida. Entenderemos que mesmo se a vida de um organismo humano começar na concepção, a vida de uma pessoa—isso é, no mínimo, um ser com algum nível de autoconsciência - não começa assim tão cedo. E respeitaremos o direito de pessoas autônomas e capazes escolherem quando viver e quando morrer".

terça-feira, 11 de agosto de 2009

O mundo da bioética

Heaven is so far of the Mind That were the Mind dissolved
The Site—of it—by Architect Could not again be proved. (Emily Dickinson)
Certamente você já ouviu falar em “bioética”, mas sabe exatamente do que se trata? Se a resposta for negativa, não se preocupe. Nem mesmo os estudiosos no assunto se entendem sobre o sentido mais exato do termo. E não é para menos. A palavra é nova e o seu significado, mais que novo, complicado.
O neologismo “bioética” surgiu com o livro do professor norte-americano Potter van RensselaerBioethics: Bridge to the Future [Bioética: Ponte para o Futuro], publicado em 1971. O termo, desde então, passou a admitir uma concepção ou perspectiva ampla e outra estrita, sem contar as pequenas variações que cada uma delas apresenta. Pois bem, em sentido estrito ou, para alguns, na perspectiva de microética, a bioética cuida das regras morais que devem disciplinar a conduta médica, a relação médico-paciente e as inovações tecnológicas aplicadas à saúde humana.
Alguns autores se referem a ela como as pautas normativas da “biomedicina”, expressão quase tautológica, não fosse pela ênfase que dá aos vínculos entre biologia e medicina, principalmente como instrumentos técnicos e científicos, sociais e ecológicos, corporais e psíquicos (o homem não é apenas um corpo-objeto do conhecer, mas também um complexo de sentimentos), de promoção da saúde humana.
Em sentido amplo, o neologismo é visto como o padrão moral de todas as ações que possam ajudar ou prejudicar os organismos capazes de desenvolver os sentimentos de medo e dor. Cuida, portanto, dos questionamentos éticos e morais acerca das múltiplas irradiações ecológicas da vida, passando-se a ser chamada, pela extensão que assume, de “macrobioética.” Ou, simplesmente, “ética da vida”.
Que concepção devemos seguir? A resposta obriga à pergunta: qual a visão-de-mundo temos, centrada no homem (antropocêntrica) ou focada no ambiente (biocêntrica ou holística)? A indagação pode exigir que se esclareça outra dúvida: que filosofia moral pressupomos (e defendemos), racionalista, utilitarista, humanista, discursivista... Qual?
Na verdade, as questões apenas revelam que a bioética admite tanto uma dimensão descritiva, destinada a esclarecer os valores que se encontram presentes nas opções éticas a serem feitas; quanto outra, prescritiva, orientada mais diretamente para a conduta dos cientistas. Dimensões que se implicam e se esclarecem mutuamente.
Talvez fique mais fácil se começarmos a pensar por que queremos e o que queremos com a bioética. Por quê? Ora, em razão das nítidas deficiências dos modelos de progresso seguidos pela humanidade, principalmente depois da Revolução Industrial: exclusivista e excludente, elitista e individualista; estetizante e ambientalmente perverso, consumista e perdulário.
Todos esses modelos (econômicos, sociais) partem de uma equivalência indevida entre o cientificamente possível e o humana e ambientalmente desejável. O corpo e o ego são as instâncias de domínio, da biopolítica à lembrança de Foucault. Aliás, a política é a esfera de decisões vinculantes apenas do ponto de vista formal, pois o centro real de decisão do que queremos hoje e desejaremos amanhã está localizado nos departamentos de marketing e finanças das grandes corporações.
As mídias apenas a veiculam, enquanto os arranjos e pressões de bastidores completam a rede de domínio. O corpo de indivíduo, nesse contexto, é tomado como uma teia neurológica de causa-e-efeito e estimulado para assim permanecer, sem alma ou transcendência, como Baxter em “Sábado”, livro do britânico noir Ian. McEwan, um corpo-reflexo do determinismo genético, irresponsável do ponto de vista das premissas antropológicas do direito (a consciência e autodeterminação) e matável, Agamben está certo, sem culpa ou remorso do assassino.
Como alerta Michel Onfray, o corpo é tudo que resta depois de serem desnudadas as ideologias (cristãs, islâmicas, marxistas, estruturalistas e outras metanarrativas) e todos os discursos de poder, inclusive os da bioética: “ce qui ne se morcelle pas ou plus quand on a tout morcelé”. A revolução informática e financeira dos últimos tempos apenas agravou esse quadro com a supremacia absoluta da estética do ter, virtualmente ampliado com as bolsas eletrônicas e os e-negócios, sobre a estética do ser, guindado a um corpo virtual e simulado em jogos, jogos não, games, tão descartáveis quanto o corpo vivo e ao vivo.
Não há, no real inventado, um real a ser valorizado como não há mata, não há rios, não há mar, não há política, não há valores a serem preservados, não há responsabilidade a ser efetivamente imputada, pois tudo é propaganda e consumo sobre e para aquele indivíduo biológico ao mesmo tempo cultuado e destruído. Não se quer com a bioética, por certo, o retorno da Idade da Pedra, mas a adoção de práticas que corrijam os desvios do progresso alcançado ao custo da perda de sentido de ser e do ser alguém com nome e, sem oligarquia, sobrenome. Um sujeito situado e mais complexo do que o somatório de reações fisicoquímicas geneticamente determinadas. Como fazer?
Pensemos, em primeiro plano, no respeito à alteridade (a autonomia moral, política e jurídica das pessoas) e à vida digna, promovida especialmente pela busca existencial da beneficência (com ações sempre voltadas para melhoria das condições pessoais e sociológicas da vida), da não maleficência (primum non nocere ou mandado de proibição a condutas danosas ou prejudiciais) e da democratização dos saberes e conhecimentos, dos riscos, custos, benefícios e das decisões correlatas (justiça eqüitativa e (re)distributiva associada ao tecnoprogressismo).
Imaginemos, ainda, intervenções que respeitem os limites do ambiente, objetivando sempre o desenvolvimento sustentado e sustentável. Estamos prontos a oferecer a concepção de bioética como visão interdisciplinar acerca do desenvolvimento da biomedicina e das tecnociências, como as entende Gilbert Hottois, de modo a compreendê-las, as descobertas científicas e as invenções técnicas, no mesmo contexto de ocorrências, efetivas ou potenciais, de benefícios e danos, das conseqüências culturais e intersubjetivas delas advindas (tema do chamado tecnocriticismo), de modo a preveni-las ou torná-las, individual, ambiental e socialmente, justas. Quer exemplos?
Fiquemos com as novidades no horizonte: as manipulações genéticas nos transgênicos e na clonagem; as técnicas de reprodução humana; os experimentos científicos nos variados campos e por diversos meios, as cobaias incluídas; a doação direta ou disfarçada de órgãos, a transexualidade e a eutanásia. Podem todos os procedimentos de pesquisa e intervenção médicas e científicas ser realizados ou até onde podem seguir? Eis alguns dos dilemas da bioética.